O Brutalista
Com o encerrar do Carnaval e a poeira baixada após a glamorosa cerimônia do Oscar 2025, fica aquela alegria gostosa no ar, como se o samba ainda ecoasse pelas ruas. Pela primeira vez, o Brasil dançou ao som da vitória no palco do cinema mundial, conquistando o cobiçado Oscar. Ah, se Fernanda Torres também tivesse levado a estatueta de Melhor Atriz, seria como um doce desfile de uma escola de samba perfeita, especialmente para nós, que guardamos na memória a expectativa de 1999. Mas, como dizem, “nem tudo são flores no jardim da vida”, e dessa vez o reconhecimento não veio para ela. Ainda assim, o saldo é de festa, não é mesmo? Nosso cinema mostrou que tem brilho próprio, e agora, o olhar do mundo se volta para as nossas histórias, nossos atores, nossa arte. E quem sai ganhando com isso? Nós, brasileiros, que vemos nossa cultura pulsando forte aqui dentro e reverberando lá fora. Que venham mais celebrações, mais filmes encantadores e, quem sabe, mais estatuetas douradas para enfeitar nossa sala de troféus cinematográficos.
Falando ainda sobre o afterglow do Oscar, Anora foi o destaque da noite, um triunfo que, sem dúvida, carrega seu mérito. Mas não podemos deixar de mencionar O Brutalista, um concorrente de peso que, com sua narrativa intensa e visual arrebatador, tinha tudo para também conquistar o coração dos jurados. E é justamente O Brutalista que vamos desvendar na Coluna Sétima Arte desta semana.
O Brutalista, dirigido por Brady Corbet, se posiciona como um arranha-céu de contradições: é ao mesmo tempo sólido e frágil, imponente e vazio, meticuloso e disperso. Inspirando-se na estética rígida e honesta da arquitetura brutalista, Corbet busca criar uma narrativa que denuncia e, paradoxalmente, reproduz a aspereza desse estilo. O resultado é um monumento cinematográfico que impressiona pela forma, mas que, após suas ambiciosas três horas e trinta e cinco minutos, deixa a sensação de que algo essencial se perdeu no concreto.
A história acompanha László Toth, interpretado por Adrien Brody, um arquiteto imigrante que foge da Europa devastada pela Segunda Guerra para reconstruir sua vida na América. O brutalismo, associado à reconstrução pós-guerra, serve como metáfora para a jornada do protagonista, cuja ascensão profissional é alcançada à custa de sua humanidade. Corbet, junto à co-roteirista Mona Fastvold, pinta um retrato da imigração que evita sentimentalismos, optando pelo concreto aparente: rachaduras visíveis, aspereza inescapável, a dureza de quem precisa se provar em um ambiente hostil. Tudo muito contemporâneo (principalmente no USA de Trump) mesmo se tratando de um filme que tem um recorte histórico muito bem definido.
A primeira cena já estabelece essa visão com uma provocação visual: a Estátua da Liberdade de ponta cabeça. Uma sugestão clara de que a promessa de liberdade pode ser uma ilusão distorcida para alguns. Esse tom cínico permeia todo o filme, intensificado pelo rigor geométrico da cinematografia e pela trilha sonora de Daniel Blumberg, que, embora inicialmente potente, acaba se tornando repetitiva.
Visualmente, O Brutalista é um espetáculo de simetria e solidez. Filmado em VistaVision, um tipo de tecnologia que amplia a escala da imagem com grande precisão, repleto de composições simétricas e enquadramentos precisamente calculados, o filme exala precisão. Cada edifício, cada cena, cada sombra reflete a rigidez do mundo em que László se encontra. Contudo, essa meticulosidade também aprisiona a narrativa. O brutalismo cinematográfico de Corbet impõe um distanciamento que dificulta sentir empatia pelo protagonista.
Brody entrega uma atuação precisa, mas contida, com uma expressão eternamente carregada, mantendo seu László sempre um passo atrás do espectador, como se enclausurado em sua própria grandiosidade, não é por acaso que essa atuação lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator. Guy Pearce e Felicity Jones funcionam como peças bem ajustadas na engrenagem do filme, mas raramente transcendem seus papéis. Até mesmo os momentos de intimidade parecem coreografias mecânicas, desprovidas de verdadeiro impacto emocional.
O maior problema, no entanto, reside no roteiro. A narrativa tenta abraçar múltiplos temas — imigração, obsessão artística, opressão social, o preço do sucesso — mas perde o equilíbrio entre ser uma ficção grandiosa e um estudo de personagem. Não há dúvidas de que se bem ajustado o roteiro poderia garantir, ao final, o Oscar de Melhor Filme para O Brutalista, tirando de Anora a glória plena do Oscar de 2025. Isso porque o filme tenta ser uma cinebiografia de um homem fictício, vagamente inspirado em uma figura real, mas essa referência parece um capricho do diretor, sem grande relevância para o desenvolvimento do enredo. O drama do protagonista, por mais bem construído tecnicamente, nunca encontra uma ancoragem emocional forte o suficiente para envolver verdadeiramente o público em sua jornada.
O filme explora, de maneira estilizada, a relação entre arte, dinheiro e poder. O mecenato que sustenta a arquitetura de László revela-se uma prisão disfarçada de liberdade. Seu patrono, interpretado por Pearce, é o arquétipo do investidor que finge apoiar a arte, mas que a molda para seus próprios interesses. Aqui, O Brutalista acerta ao expor as tensões entre idealismo e pragmatismo, mostrando como um arquiteto visionário pode se tornar refém do sistema que tenta transcender.
No entanto, a metáfora é prejudicada pela obsessão do filme com a forma. A estética brutalista domina a experiência a ponto de sufocar a narrativa. É como um prédio que impressiona pela grandiosidade, mas cuja funcionalidade deixa a desejar. Um dos maiores tropeços de Corbet é a cena do estupro em Carrara — um momento de brutalidade extrema que, em vez de aprofundar o drama, soa gratuito e desnecessário. A história já havia deixado claro as violências sociais e pessoais enfrentadas por László; insistir nessa cena parece uma tentativa forçada de adicionar gravidade a um filme que já se levava a sério demais.
Além disso, a conclusão desconjuntada compromete o impacto final. Após horas construindo camadas de simbolismo, Corbet encerra a narrativa de maneira apressada e didática, como se temesse deixar perguntas sem resposta. No fim, O Brutalista parece tão focado em sustentar sua imponência que esquece de dar um propósito claro para sua construção.
Por que ver esse filme? Independente de seus erros e acertos, o cinema de Brady Corbet é ambicioso e só isso já vale a entrada no cinema. Ele busca criar filmes que desafiam o espectador, que provocam e impressionam. E, em muitos aspectos, O Brutalista consegue isso. O filme é um deleite visual, sua trilha sonora começa promissora e sua temática tem potencial, mesmo um filme não podendo viver apenas de estética. Ao final, O Brutalista é como um edifício brutalista: impressionante de longe, mas frio e impessoal por dentro. O concreto e os alicerces estão lá, mas falta algo humano, algo vivo. Mesmo assim, há de se considerar que a grande questão que o filme nos deixa não é sobre arte, imigração ou poder, mas sobre a necessidade de equilíbrio entre forma e substância. Boa sessão!