O Agente Secreto


Após uma longa espera, o filme escolhido pelo Brasil para concorrer ao Oscar 2026 chegou aos cinemas. Porém, por mais que ele tenha sido aclamado e ganhado vários prêmios em festivais internacionais importantes, eu acho muito difícil que o Brasil conquiste o bi no Oscar do ano que vem. Quero deixar claro que essa afirmação não é devido à falta de qualidade do filme em questão — pelo contrário, ele é excepcional — mas pela concorrência desse ano que vem muito acirrada para o Oscar de Filme Internacional, com obras de peso vindas da Noruega (Valor Sentimental), da França (Foi Apenas um Acidente) e da Coreia do Sul (No Other Choice — sem título no Brasil), filmes de qualidade e que despontam como favoritos em várias listas de indicados.
Tomara que eu esteja errado e que Oscar volte ao Brasil, porém, as possíveis indicações já são mais que suficiente para fazer essa grande obra de Kleber Mendonça Filho brilhar para o mundo inteiro. Falando nisso, é preciso ressaltar que há diretores que constroem filmes, e há diretores que constroem memórias. Kleber Mendonça Filho é um dos poucos que fazem as duas coisas ao mesmo tempo. Em O Agente Secreto, seu novo longa, ele volta a Recife para mais uma vez filmar o invisível, ou seja, não apenas o que está fora do enquadramento, mas também o que o país prefere não enxergar de jeito nenhum.
O filme começa em 1977, em pleno Carnaval, com um Fusca amarelo coberto de poeira cortando uma estrada deserta. Dentro dele está Marcelo, papel do carismático e talentoso Wagner Moura, um homem aparentemente comum, cuja calma ao abastecer o carro contrasta com a presença absurda de um corpo coberto por um papelão ao lado da bomba de gasolina. Ninguém parece se importar. O atendente explica, sem emoção, que foi uma tentativa de assalto e que o dono do posto não liga — a polícia tampouco. Em poucos minutos, Kleber nos mergulha em um país anestesiado, onde a violência é banal e a morte, burocrática. É o Brasil da ditadura, mas também o Brasil de sempre, que persiste até hoje e que não choca ninguém quando esfrega a morte, transvestida de justiça, na cara da população.
Marcelo foge para Recife, levando consigo o filho pequeno e um passado em frangalhos. A princípio, ele busca anonimato: um novo nome, um novo endereço, uma tentativa de começar do zero. Mas em O Agente Secreto, ninguém está realmente seguro, nem mesmo quem tenta desaparecer. A cada cena, a cidade parece observá-lo. As paredes, os cinemas, as repartições públicas, tudo carrega uma espécie de memória viva, como se o espaço urbano fosse cúmplice das histórias que tenta esconder.
Essa é uma das grandes forças do cinema de Kleber Mendonça Filho. Assim como em O Som ao Redor, Aquarius e o incrível Bacurau, a cidade volta a ser personagem, pois ela é pulsante, contraditória, linda e decadente. Recife surge aqui com uma precisão impressionante: carros barulhentos, prédios coloniais em ruína, um cinema São Luiz repleto de ecos de outras vidas. É um retrato de época meticuloso, mas também um espelho do presente. O diretor não apenas recria os anos 70, ele os invoca, como quem chama fantasmas que nunca foram embora.
E se o gênero escolhido é o thriller de espionagem, o que Kleber faz com ele é quase subversivo. Não há explosões, gadgets, ou perseguições frenéticas no estilo 007. Em vez disso, temos um suspense de queima lenta, movido por olhares, silêncios e pelo peso da história. A espionagem aqui não é glamour: é apagamento. Marcelo é um homem que tenta desaparecer, mas a cada passo se torna mais visível para o sistema que o oprime. Ele é, ao mesmo tempo, agente e vítima, um símbolo de um país que vive disfarçado, trocando identidades para não encarar a própria verdade.
Wagner Moura está impecável. Há algo profundamente contido em sua interpretação, como se o personagem carregasse uma tristeza que não pode ser dita. Seus gestos são econômicos, mas cada olhar carrega um passado inteiro. Moura não atua para brilhar, ele atua para existir. E isso faz toda a diferença e pode lhe render uma indicação ao Oscar de Melhor Ator. Sua química com Tânia Maria, que interpreta Dona Sebastiana, é um dos respiros mais deliciosos do filme. Tânia Maria foi descoberta como Kleber em Bacurau e agora volta nessa nova obra para brilhar. Ela é a vizinha faladeira que, sem saber, guarda segredos maiores do que imagina. Há humor, doçura e uma pitada de surrealismo, algo que Kleber usa com maestria, como na aparição de um gato com dois rostos ou na hilária menção à lenda da “Perna Cabeluda”. Uma liberdade que só Kleber Mendonça Filho pode assumir, colocar elementos de realismo fantástico numa obra densa como O Agente Secreto.
Apesar dessa densidade política, o filme nunca é panfletário. O Agente Secreto fala da ditadura, mas vai além dela. Mostra como o poder militar e o empresarial se misturavam de forma simbiótica, como a corrupção não era exceção, mas regra, e como o silêncio era a ferramenta mais eficiente de controle. É um filme sobre documentos que somem, pessoas que são apagadas e memórias que viram ruínas. E, ao mesmo tempo, é uma obra sobre resistência. Nesse caso, não a resistência heroica dos discursos épicos, mas a silenciosa, aquela que se dá no gesto cotidiano de continuar existindo.
A direção de fotografia de Evgenia Alexandrova (o nome parece soar estranho, mas ela é russa, radicada na França) reforça esse sentimento de esquecimento e vigilância. A granulação da imagem e as cores levemente esmaecidas nos transportam direto para os anos 70, sem que o filme pareça um pastiche. É um tempo que sentimos na pele: abafado, lento, suspenso. Já a trilha sonora, discreta e precisa, pontua as tensões com elegância, deixando espaço para o som da cidade, repleta de buzinas, vozes, rádios, passos. Em O Agente Secreto, até o barulho do ventilador parece ter algo a dizer.
O roteiro costura passado e presente com delicadeza. Entre fitas cassete e arquivos de voz, uma jovem pesquisadora (numa breve, mas marcante participação) tenta reconstruir a história de Marcelo décadas depois. Ao ouvir suas gravações, ela nos lembra que os ecos da ditadura ainda vibram — que a borracha que tentou apagar certas memórias não conseguiu dar conta de tudo. O filme sugere que, por mais que tentemos reescrever o passado, há sempre algo que insiste em ressurgir, como um corpo coberto de papelão à beira da estrada.
Nem tudo, porém, é perfeito. O epílogo, ambientado no tempo presente, talvez soe um pouco apressado e menos inspirado que o restante da obra. Mas é um tropeço pequeno diante da grandiosidade do conjunto. O Agente Secreto é, antes de tudo, um filme sobre o Brasil, sobre um país que adora fingir que esqueceu, mas que vive assombrado pelos seus próprios fantasmas ressurgem de tempos em tempos. Um país que muda de cara, mas continua o mesmo.
Com esse filme, Kleber Mendonça Filho reafirma-se como um dos grandes autores do cinema contemporâneo. Ele não apenas filma histórias, ele as escava, como um arqueólogo das emoções e das memórias nacionais. E talvez seja por isso que O Agente Secreto emocione tanto — porque, no fundo, todos nós já fomos um pouco como Marcelo: tentando sobreviver, sem sermos apagados por completo.

