Conclave
Já faz algum tempo que o cinema encontra na Igreja Católica uma fonte inesgotável de inspiração para suas obras. É claro que, em busca do entretenimento, nem sempre o que se apresenta ao público pode ser considerado fiel ao que a Igreja é ou representa. Nesse ponto, entra em debate a questão da liberdade artística. Até onde a arte, com seu potencial transgressor, pode atacar, contestar ou colocar em xeque a fé e os valores de milhões de pessoas? Esse tom de subversividade da arte encontra na Igreja um alvo fácil, pois, como instituição, ela ainda exerce um grande fascínio sobre crentes e descrentes e desperta uma aura de mistério e curiosidade que são grandes atrativos para o público. A grande estreia dessa semana, mais um dos fortes candidatos a algumas indicações ao Oscar, bebe dessa fonte. Nesta edição, a Coluna Sétima Arte lançará algumas luzes sobre Conclave, o novo filme inspirado na Igreja Católica que acabou de chegar aos cinemas.
Conclave, dirigido por Edward Berger e baseado no livro homônimo de Robert Harris, emerge como uma obra cinematográfica que resgata o fascínio pelo drama religioso, um gênero que não ocupava as telas com tanta intensidade desde o impacto de O Código da Vinci. O diretor, aclamado por seu trabalho em Nada de Novo no Front (ganhador de 4 Oscars em 2023), demonstra mais uma vez sua capacidade de conduzir narrativas complexas com maestria. Conclave é um exemplo brilhante de como um diretor pode transformar uma eleição papal — algo que, supostamente, deveria ser um evento tranquilo — em um thriller psicológico envolvente. A história se desenrola após a morte do Papa, interpretado por Bruno Novelli, e a responsabilidade de coordenar o conclave recai sobre o Cardeal Lawrence, vivido por Ralph Fiennes, cuja performance é notável.
Fiennes, conhecido por sua versatilidade em papéis que vão desde vilões icônicos até personagens mais introspectivos, encarna Lawrence com uma profundidade que captura a essência de um homem sob pressão. Seu físico, cada vez mais curvado à medida que a eleição avança, é uma metáfora visual da carga que ele carrega ao longo da trama. A atuação de Fiennes é um dos pilares que sustentam a narrativa, por isso, ninguém ficou surpreso ao vê-lo novamente entre os indicados às grandes premiações, como, por exemplo, o Globo de Ouro 2025, que ele perdeu para Adrien Brody.
O elenco de apoio é igualmente notável. Stanley Tucci, como o Cardeal Bellini, traz uma perspectiva contemporânea e progressista para a Igreja, enquanto John Lithgow, no papel do Cardeal Tremblay, apresenta uma ambição velada por uma fachada de resignação. Sergio Castellitto, como o Cardeal Tedesco, é o conservadorismo encarnado, e sua interpretação quase teatral rouba a cena sempre que aparece. Lucian Msamati, como o Cardeal Adeyemi, adiciona uma camada de diversidade e sutileza ao debate interno da Igreja, com sua origem africana trazendo uma nova dinâmica ao conservadorismo.
Isabella Rossellini, embora com pouquíssimo tempo de tela como a Irmã Agnes, deixa uma impressão duradoura de sua presença. Sua personagem, envolvida na organização do conclave e guardiã de um segredo de grande magnitude, é um lembrete da presença feminina em um ambiente predominantemente masculino. Infelizmente, o filme não explora tanto quanto poderia o potencial de sua personagem, mas a brevidade de suas aparições não diminui o impacto de sua atuação.
O trabalho técnico empregado em Conclave é de se admirar. A fotografia de Stéphane Fontaine é um verdadeiro destaque, com enquadramentos que transformam cenas cotidianas em momentos de pura arte visual, existem sequências de cenas que dão até vontade de enquadrar e colocar na parede. A chuva que os cardeais enfrentam é capturada de forma a se tornar um símbolo poderoso, talvez uma representação dos desafios que a Igreja enfrenta em tempos de mudança. A trilha sonora de Volker Bertelmann complementa a narrativa com tons solenes que elevam a tensão em pontos cruciais. Peter Straughan, responsável pelo roteiro, consegue equilibrar a linha tênue entre revelar e ocultar, proporcionando ao público uma trama repleta de reviravoltas e questionamentos. A Igreja Católica, com seus dogmas e políticas, é colocada sob um microscópio, e os cardeais, embora homens de fé, revelam-se em sua humanidade — com virtudes e defeitos que influenciam suas ações e articulações pelo poder.
A decisão do diretor de não recorrer a flashbacks para explicar o passado do papa falecido é um testemunho da confiança do diretor na inteligência de seu público, que é convidado a preencher as lacunas com suas próprias deduções. Contudo, nem tudo é perfeito. A introdução de eventos externos ao Vaticano e a chegada do Cardeal Benítez, interpretado por Carlos Diez, parecem desviar a atenção da intriga principal. Embora esses elementos sirvam para agitar as águas e promover discussões, há uma sensação de que poderiam ter sido integrados de forma mais orgânica à trama, evitando desvios narrativos que, por vezes, parecem artificiais.
A reviravolta final, embora surpreendente — e certamente um ponto de discussão entre o público mais atento —, carece de uma conexão mais profunda com o desenvolvimento da história. Ela se apresenta quase como um elemento externo, uma surpresa para o público, mas não tanto como uma consequência natural dos eventos que desenrolam no Vaticano. Isso pode deixar alguns espectadores com a impressão de que o filme se esforçou para criar um momento de choque, em detrimento de uma coesão narrativa mais apurada. De qualquer forma, ele tenta provocar reflexões. Apesar desses pontos, Conclave se mantém como um thriller eclesiástico robusto, capaz de manter os olhos do público grudados na tela. A habilidade de Berger em criar tensão é evidente, e a forma como ele utiliza os espaços do Vaticano contribui para essa sensação de suspense iminente.
Por que ver esse filme? A obra se destaca por abordar temas contemporâneos relevantes à Igreja Católica, como a renovação ou não de certos dogmas e a influência política em suas decisões mais sagradas. Berger entende a magnitude da missão de escolher um líder para mais de 1,3 bilhão de fiéis e trata o assunto com a seriedade e o drama que ele exige. Além do mais, ele mata a curiosidade de muita gente que sonha em saber como se porta e o que fazem os cardeais trancados na Capela Sistina durante a eleição de um novo Papa. Este é um filme que não apenas entretém, mas também provoca reflexões sobre fé, poder e a natureza da liderança religiosa em um mundo em constante transformação. Com um elenco de primeira linha, uma direção segura e uma narrativa que nos faz questionar até o último minuto, este será um prato cheio para aqueles que apreciam um bom mistério e um debate intelectual. Boa sessão!