Nietzsche e eu – ou de quando a lâmpada acende
É muito difícil determinar quando um assunto passa a tomar força em nossos pensamentos. Por que nos dedicamos a um assunto e não a outro? E por que nos dedicamos intensamente a um assunto e não a outro? Em termos metafóricos, o que faz a lâmpada acender? Eis questões que talvez nem incomodam as pessoas, mas algumas veem em tais indagações problemas e passam a inquiri-las.
Para mim, Nietzsche foi um acontecimento, um divisor de águas. Entre 2005 e 2006 eu estudei em seminário católico e era alguém que gostava de entender e criticar as religiões no geral. Certa vez um padre foi ministrar uma aula e disse:
“- Nietzsche não vamos estudar, pois ele morreu louco.”
Aquela fala despertou a minha curiosidade. O que para os demais seminaristas soou como uma ordem, para mim soou como um desafio. A partir disso tomei contato com as obras “O Anticristo”, “A Gaia Ciência” e “Aurora”. Em 2006 ganhei o livro “Escritos sobre História” e então Nietzsche passou a ser o centro das minhas reflexões. Também em 2006 eu saí do seminário e prestei vestibular para História na Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí (FAFIPA), atual UNESPAR, o que em 2007 me fez um acadêmico.
Para ser sincero, nunca pensei em ser historiador, mas filósofo. E nunca pensei em ser professor, mas imaginei uma graduação que melhor compreendesse os meus anseios intelectuais. Só isso – e tudo isso. Como Filosofia não tinha em Paranavaí, apenas em Maringá, e eu não tinha condições de mudar de cidade, fiz História, curso que, ao meu ver, era o mais próximo do que eu almejava.
Não gostei tanto dessa graduação, pois eu idealizava uma e acabei por fazer outra. Além disso, senti falta de professores pesquisadores e que estimulassem o debate com autoridade. A sorte foi ter encontrado a professora Luciana Pomari, que veio a se tornar minha orientadora por quatro anos, senão História teria sido um fardo enorme à minha história.
Talvez pelas minhas imaginações juvenis, Nietzsche e as suas críticas à história caíram como uma luva. E as críticas ao eruditismo também. Para mim, o tipo de história que me era ensinada não servia à vida e era, no máximo, erudita. Hoje eu penso que se ao menos fosse um ensino erudito a formação do estudante teria sido sólida.
Críticas à parte, Nietzsche tornou-se um companheiro de jornada, de 2005 a 2017. Em 2005 comecei a lê-lo e em 2017 terminei o pós-doutorado sobre o filósofo. Comprei e li tudo o que pude. Participei de eventos, conheci pessoas, viajei, tudo para conhecer de perto o filósofo. Nesse percurso conheci pessoalmente o professor Oswaldo Giacóia e fiz amizades com os professores José Fernandes Weber, Rogério Seixas, Marcelo Rangel e Renato Nunes Bittencourt, grandes especialistas na obra do filósofo alemão.
Em 2009 a minha dedicação a Nietzsche era tão grande a ponto de que ganhei um maravilhoso vira-lata marrom e coloquei o nome de Nietzsche. Meu cachorrinho veio a falecer em 2019 de câncer. Uma tristeza.
Enfim, quando chegou 2010 e eu estava no último ano da graduação, era preciso desenvolver um tema para o mestrado. Não me veio nem outro tema e nem outro autor. Tema: “a crítica ao eruditismo”; autor: “Nietzsche”.
E assim cursei o mestrado, doutorado e o pós-doutorado sobre o filósofo alemão. Infelizmente nunca aprendi alemão, mas procurei me cercar de boas traduções em português, inglês e espanhol, idiomas que compreendo. Depois do pós-doc comecei a estudar outros temas e outros autores. Nietzsche para mim se tornou, na linguagem dele próprio em “A Gaia Ciência”, um “amigo estelar”[1]:
Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. - E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra (NIETZSCHE, 2009, p. 190).
Comecei esse artigo trazendo um problema, o de saber quando começa um determinado interesse. Adianto que o fato de eu conhecer como se deu meu interesse é um privilégio. Agora, cabe uma nova pergunta: e Nietzsche, desapareceu? Antecipo com uma palavra apenas: não.
Primeiro que volta e meia leio o filósofo, e segundo que, ainda quando não o leio, ouço a sua voz. E mais do que isso, parece que meus novos temas de pesquisa de alguma formam tocam tanto Nietzsche como a minha personalidade mais íntima.
Nietzsche, em especial após aposentar na Universidade de Basileia, em 1879, passa a viver uma vida de viagens pela Europa. Eu, após concluir o doutorado, passei a viajar bastante também. No meio das viagens passei a estudar autores que também viajaram muito, como Albert Schweitzer e Hannah Arendt. No caso de Arendt, ela foi uma refugiada, algo que me ligou pouco a pouco com o tema dos refugiados e dos venezuelanos em êxodo. Não custa dizer, ainda, que em 2018, quando intensifiquei os estudos sobre a Venezuela, publiquei um livro sobre Nietzsche e outro sobre os refugiados venezuelanos.
A questão é que de alguma forma a vida liga ponto por ponto e tudo se forma em um todo, ainda que sobrem peças e faltem peças no quebra-cabeça chamado ser humano.
Friedrich Nietzsche. A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[1] Nietzsche escreve esse texto que bem pode ser aplicado à sua relação com o músico Richard Wagner, de amistosa à rixosa. A minha amizade com o filósofo não chegou ao nível da rixa, e espero que jamais chegue.
Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.