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Mães Paralelas


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 24/02/2022
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Duas coisas são fascinantes nas obras do renomado cineasta espanhol Pedro Almodóvar: as mulheres e as cores. Minha indicação para essa semana é seu novo filme que acabou de chegar na Netflix. A nova obra de Almodóvar tem uma indicação ao Oscar e ostenta de maneira sublime esses dois elementos tão queridos pelo público. Num fim de semana prolongado e sem nenhuma grande estreia no cinema, a melhor pedida é assistir Mães Paralelas no conforto do lar.

O ano era 2019 e muita gente, inclusive os críticos, acreditavam piamente que a carreira de Almodóvar havia chegado ao fim, isso porque o clima e a temática de Dor e Glória indicavam isso. Ledo engano! Eis que, em 2022, Almodóvar surge mais inspirado e vivo do que nunca. Pedro Almodóvar é a cara do cinema espanhol décadas e muita gente, dentro e fora do país, tem nele sua maior inspiração. Ganhador do Oscar, Globos de Ouro, Goyas (a premiação mais importante do cinema espanhol) e honrarias em Cannes, ele é um verdadeiro gênio da sétima arte.

Com um jeito único de contar histórias, ele construiu uma filmografia sólida e suas obras são facilmente identificadas pelo público. Como dito anteriormente, os traços mais marcantes de suas obras são as personagens femininas e as cores fortes. Mas a elas Almodóvar sempre soma algo a mais, o terceiro elemento, muitas vezes implícito. Este representa sempre a mensagem nas entrelinhas, isso porque para todo grande gênio o cinema é mais do que apenas contar uma história, mas sim dizer algo. Sobre essa mensagem nas entrelinhas que irei me dedicar em boa parte da coluna dessa semana, pois um expectador que não conheça o contexto ao qual o filme se refere pode nem mesmo perceber o tom político que o filme carrega.

Em Mães Paralelas, Almodóvar usa de todo o seu prestígio para enfiar o dedo na ferida aberta que o fascismo do general Francisco Franco que governou a Espanha entre 1939 e 1976 deixou para as gerações futuras. Aquilo que aparentemente seria a história de uma mulher com os desafios de criar um filho sozinha, na verdade, se mostra como um manifesto que apresenta como pano de fundo o horror do fascismo espanhol, que enterrou como indigentes em fossas comuns no interior do país mais de 100 mil pessoas.

Pedro Almodóvar é um mestre dos diálogos e é por meio deles que vai oferecendo ao público uma verdadeira aula de história enquanto desenvolve o drama das duas mães. Um profissional do calibre de Almodóvar não precisava fazer isso, ele poderia escolher contar qualquer história leve ou fantasiosa, mas é justamente o fato de ser quem é, e de saber que os olhos do mundo estarão atentos ao seu trabalho, que ele assume para si a responsabilidade de falar quando muitos outros se calam.

Hoje, mais que nunca, o fascismo se tornou uma ameaça para o mundo ocidental. A Espanha assiste inerte ao surgimento de grupos fascistas que defendem abertamente a ditadura de Franco. pouco mais de um mês estive na Espanha, de férias, e bem por isso posso falar com propriedade que é assustador o fato de que cada vez mais o partido Vox (claramente populista, de extrema direita e que defende a ditadura), ter ganhado espaço na sociedade e cadeiras no parlamento. No resto do mundo, assim como no Brasil do atual (des)governo, grupos têm se organizado em torno de figuras claramente autoritárias, antidemocráticas e inclinadas ao totalitarismo. Além disso, no submundo da dark web, ou mesmo nas redes sociais, outros tantos se reúnem e exaltam regimes como o nazismo, o franquismo e vários outros. Ou seja, esse é o momento em que aqueles que têm espaço para serem ouvidos não podem se calar. Ciente disso, Almodóvar fez de sua nova obra um filme/manifesto, em que ele busca abrir os olhos das novas gerações, da Espanha e do mundo, para o passado obscuro que os tempos de tranquilidade e o desinteresse pela história jogaram no esquecimento.

Exaltada a justificativa para a urgência da trama, cabe agora comentar sobre as questões técnicas da obra. Primeiro ponto a destacar é sua linguagem novelesca. Esse é um dos grandes acertos do diretor, essa forma de desenvolver o roteiro o torna acessível a todas as pessoas (de maneira especial ao público brasileiro, tão apaixonado por novelas). Aos poucos ele vai tecendo uma trama paralela não apenas entre as duas mães de primeira viagem, mas entre passado e presente. A tragédia é o elo entre os personagens e que exemplifica de maneira muito didática o quanto a história de uma sociedade, ou de um pais, pode influenciar e moldar a vida e o futuro de um indivíduo. A maternidade se constrói a partir de traições, estupros coletivos, perdas irreparáveis e revelações embaladas ao som de Janis Joplin.

O roteiro, como sempre, é certeiro, contido e extremamente sólido. Cada diálogo é um deleite, demonstrando que nem só de grandes reviravoltas se faz um bom filme. Já o trabalho de fotografia é o responsável pela exaltação das cores, tão típicas de Almodóvar. A vivacidade do vermelho e do amarelo representam a esperança que insiste em colorir a vida, mesmo diante das adversidades e dos sofrimentos representados pelas tonalidades mais roxas ou azuis.

Uma outra característica de Almodóvar, assim como de outros bons diretores, é o fato de buscar sempre trabalhar com os mesmos atores. Muita gente costuma brincar que Almodóvar elege, de tempos em tempos, suas musas. Uma delas é Penélope Cruz, que já trabalhou oito vezes com Almodóvar, o primeiro filme entre os dois foi em 1997. De lá para cá a parceria está cada vez melhor, tanto que esse ano ela ganhou uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz justamente por esse filme. Vamos à trama!

Em Mães Paralelas, duas mulheres, Janis e Ana, dão à luz no mesmo dia e no mesmo hospital. Janis, de meia idade, teve a gravidez planejada e já se sente preparada e eufórica para ser mãe. Ana, adolescente, engravidou por acidente numa situação traumática, além de estar assustada, arrependida e abandonada. As duas enfrentam essa jornada como mães solos e se aproximam por isso. Ambas dividem não apenas o quarto do hospital, como também esse momento tão transformador de suas vidas, por isso constroem um vínculo profundo. Esse encontro poderá mudar a vida de ambas para sempre, como um forte laço que surge a partir da maternidade.

Por que ver esse filme? Porque é pura arte. Me atrevo a dizer que, caso a Espanha não tivesse esnobado Almodóvar e escolhido Mães Paralelas como seu representante para o Oscar de Melhor Filme Internacional no lugar de The Good Boss, ela certamente estaria no páreo. Esse é um filme que fala sobre verdade e liberdade, sobre enfrentar as perdas do passado e do presente e, ainda assim, seguir em frente. Só isso já basta para indicar que ele faz parte daquele seleto grupo de filmes imperdíveis dessa temporada. Boa sessão!

  Assista ao trailer:

 

Odailson Volpe de Abreu


Anuncie com Jornal Noroeste
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