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Machado de Assis. “O alienista”


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 06/03/2025
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Machado é um escritor que desde o ensino médio me fascina. A primeira obra que li de sua autoria foi “Dom Casmurro”, e depois “Memórias póstumas de Brás Cubas” e “Memorial de Aires”, além de vários contos. Dito isto, este livro de resenhas poderia ter muito mais referências ao mestre da ironia, mas, não é preciso tanto para mensurar a sua importância para mim.

        “O alienista”, um conto longo de Machado, é de um bom gosto e de uma ironia enormes. Fazer esses elogios e nada é praticamente a mesma coisa, pois eles são clichê, porém, vou explicá-los. Bom gosto: o tema, a linguagem, o encadeamento da história, tudo se assemelha a uma sinfonia, algo que, por sinal, Machado tanto apreciava. Ironia: tudo começa grande, com os méritos do médico Simão Bacamarte sendo colocados no pedestal, e a história termina de modo grandioso, por meio de uma autocrítica do alienista.

 

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.

- A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo. (ASSIS, 2015, p. 38).

 

Isto é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. (ASSIS, 2015, p. 80).

 

        O que se percebe ao longo da história é o poder não só do médico, formado em Coimbra e Pádua, mas o próprio poder da medicina, capaz de interditar alguns e de louvar outros. E tal poder, nas mãos do alienista, tornou-se sem precedentes na pacata Itaguaí, a ponto dele ser autorizado pela câmara de vereadores a criar um local para estudo dos loucos, a “Casa Verde”. Com a autorização dada, a imaginação do médico, que já não era pequena, tornou-se sem limites. Seus inúmeros dissecava o ser humano sem dó. Por mais que ele tivesse ganhado muito dinheiro com a loucura, o vil metal não era o objetivo nem inicial e nem final do “grande homem”, mas a ciência. A sua esposa, contudo, se encantou pelo dinheiro, mas ele, que mais importava o progresso da ciência, deixava-o guardado. Ele não só não se importava como depois de um tempo deixou de cobrar pelas internações.

Rua Gonçalves Dias

        A situação em Itaguaí chegou a tal nível de loucura, onde o terror pela prisão na Casa Verde estava tamanho, que as pessoas, reunidas em torno do barbeiro Porfírio, fizeram uma rebelião. Foi a rebelião dos “Canjicas”. Mas, que bela ironia, e que belo clichê: tão logo o líder tomou o poder, se aliou ao opressor, no caso, ao Dr. Bacamarte. E assim, aos poucos, a rebelião minguou, caiu do poder o barbeiro e outro veio ao seu lugar. Resultado de toda essa confusão? Todos internados na Casa Verde. Vitória do médico.

        O conto, em seu bom humor, nos revela que em determinado momento 4/5 de Itaguaí estavam presos no “asilo”. Nesse instante, a história muda e o ponto de vista para ser internado seria outro: quem tivesse não mais em desequilíbrio, mas em pleno equilíbrio das faculdades mentais. E assim mais uma leva de boas pessoas foi levada à Casa Verde. Tudo pelo bem da ciência, afirmava o alienista. Só que o resultado dessa virada de paradigma só poderia ser um: quem a todos internava, era ele próprio o maior de todos os mentecaptos. Então, o médico vai para a Casa Verde.

Rua do Ouvidor

        A bela e trágica história machadiana nos revela os perigos da confiança nos poderes e, no caso, nos poderes individuais do médico. Ai de quem pôr a confiança em uma só pessoa, ou em um só discurso. Essa constatação parece óbvia, mas não é. Entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, Einstein e Freud se corresponderam sobre a guerra, por meio de cartas, e Freud, desconfiado da natureza humana, disse que o problema da violência era intrínseco e que tiranias dificilmente desapareceriam, assim como as guerras.

        Outro grande escritor que refletiu sobre a natureza humana é Kafka. Em “O Processo”, Joseph K. simplesmente é processado, perseguido e executado. O totalitarismo das forças jurídicas lhe dominou. No caso de Machado era o totalitarismo do discurso médico. E em “A Metamorfose”, uma pessoa comum, Gregor Samsa, é transformada em um “inseto asqueroso”. Em “O alienista”, as pessoas, de saudáveis são transformadas em loucas.

        No conto de Machado é possível encontrar de tudo, o poder do discurso médico, os costumes do século XIX, a política miúda, o papel dos puxa-sacos, como se formam rebeliões populares, mas, antes de tudo, um olhar duro sobre o ser humano, sem ilusões, sem esperanças ingênuas, observando as suas contradições. De são a louco em um passo; de anjo a demônio em meio passo.

 Machado de Assis. 50 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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