Homero. “Odisseia”
Eu tenho algumas alegrias intelectuais, dentre as quais, a de ter lido “Ilíada” e “Odisseia”. Tratam-se de obras atemporais, que sempre serão jovens a quem ler.
O meu primeiro contato com a “Odisseia” foi por meio do filme produzido por Francis Ford Coppola, que sempre me impressionou pela atuação dos atores e pelos efeitos visuais. Todavia, eu ficava com a dúvida se a película tinha se atentado à obra. Para a minha felicidade, hoje posso afirmar que sim, a obra de Coppola atentou-se ao clássico grego, sendo um ótimo meio de se introduzir no universo homérico.
“Odisseia” segue o mesmo estilo de “Ilíada”, sendo feita por meio de vinte e quatro cantos. Enquanto este livro trata dos cinquenta e um dias da ira de Aquiles no décimo ano da Guerra de Troia, aquele trata do retorno do herói Odisseu à sua amada Ítaca. Porém, um retorno que demorará vinte anos, dez por causa da Guerra e dez para que, enfim, o itáceo chegasse ao lar. De início, isso me faz pensar que a vida é cheia de surpresas. É possível, desejável e aconselhável fazer planejamentos, mas estes, não raro, fogem ao nosso controle. Às vezes planejamos executar algo em uma semana, mas levamos meses; às vezes pensamos em rever nossos familiares em seis meses, mas levamos anos. Odisseu, por isso mesmo, bem pode servir de espelho para cada pessoa.
O poeta Homero chama Odisseu por vários nomes, sempre com ênfase: herói multissofrido, herói multipadecido, herói multiastuto, etc. O que fica patente é que o herói, de fato, é muito tudo. Nada com ele é comedido. Se é para guerrear, que o sangue não seja escasso; se é para ser astuto, que até os deuses entrem no jogo; se é para padecer, que o herói possa perder a aparência jovial e ser envolvido com a de um velho mendigo; e se é para ficar fora de casa, que seja por vinte anos. Contudo, o herói, em sua saga para retornar à Ítaca, também teve felicidades. É o caso de Odisseu ter ficado vários dias (anos) nos braços de Circe e de Calipso, deusas que lhe desejaram ardentemente, a ponto do herói com elas se relacionar.
Não preciso me prolongar no óbvio: os deuses gregos parecem seres humanos melhorados, no caso, super homens. Esses deuses choram, riem, se iram e têm relações com os humanos, a ponto de que Aquiles era filho de Tétis, uma imortal. É nesse cenário que algo incrível ocorre, a deusa Calipso apaixona-se por Odisseu, prometendo-lhe tudo, a exemplo da imortalidade. No entanto, o herói “multissofrido” não quer felicidade e jovialidade eternas junto da deusa. Ele quer voltar à terra natal e ficar ao lado de sua esposa Penélope e de seu filho Telêmaco. É exatamente isso: Odisseu se cansa da companhia da deusa, mesmo esta lhe prometendo tudo. Síntese: o ser humano até que anseia pela felicidade, mas, caso esta venha, poderá se perder.
“(...) Multiastuto Laertíade,/ desejas efetivamente retornar/ à terra ancestre, renegando minha casa?/ Pois vai, que eu te saúdo! Ciente da aflição/ que é teu destino padecer anteriormente/ a por os pés em Ítaca, guardião do lar/ em que hoje estás, comigo ficarias, sem/ morrer, embora ansioso de rever a esposa/ com quem, ao longo das jornadas, tens sonhado./ E eu me envaideço de não lhe ficar atrás/ na forma física e expressão, pois forma e corpo/ mortais não se comparam com imperecíveis.”/ E o pluriarguto respondeu: “Sublime deusa,/ comigo não te agastes: sei perfeitamente/ bem que a estatura e as curvas da consorte sábia/ são inferiores às que alguém encontra em ti:/ eterna desconheces (ela não) velhice./ Mas, mesmo assim, o meu anseio-mor é ver o dia do retorno em que eu adentro o lar./ E se um dos deuses me afundar no oceano vinho,/ suportarei, pois trago no ânimo a paciência,/ tantos reveses padeci, tantas angústias/ nas ôndulas, na guerra, às quais acresço estas.” (HOMERO, 2013, p. 92).
A relação entre Odisseu e Calipso, relatada em especial no Canto V, revela muito sobre o ser humano, conforme dito. Além disso, mostra o poder que os laços familiares possuem, o poder que possui uma esposa e a terra pátria. Eu, que já tive oportunidade de viajar mundo afora, vi brasileiros que estavam há cinco, dez, vinte anos fora do Brasil, mas que, diante da primeira oportunidade, voltavam para visitar os parentes. Além desse retorno ao lar, ainda que provisório, brasileiros no exterior, e estrangeiros como um todo, gostam de comer a “comida da mãe”, seja esta a biológica, seja enquanto símbolo para a terra natal. Para esse sabor paga-se até mais caro, até o dobro e o triplo. É por isso que o comércio exterior é tão interessante: se um brasileiro estiver em Kiribati e ele descobrir em uma venda produtos brasileiros, lá ele se tornará freguês.
Odisseu também é a marca da angústia. Mesmo ele sendo o líder de Ítaca, um herói glorioso, um gênio, não são poucas as ocasiões em que ele chora. Ai de quem pensar que os ricos não choram. Ai de quem pensar que a angústia só chega aos pobres. Tudo bem que a angústia dos pobres pode doer mais, por causa do medo da fome, como tão bem relatou Carolina de Jesus, mas, daí a desprezar o sofrimento dos ricos é desconhecimento do que a vida é. Sim, eu sei que Odisseu, enquanto náufrago, estava longe de ter a pompa de um rei, porém, era com ele, e não com os seus companheiros, que as deusas Circe e Calipso se relacionavam. Mas, o astuto herói não se contentava com essas felicidades, por estar longe de Ítaca, de Penélope e de Telêmaco.
A exemplo da “Ilíada”, em que Homero disse que precisaria ser um deus para relatar tudo o que se passou na Guerra de Troia, o que lhe seria impossível, na “Odisseia” o poeta também comenta sobre a arte de escrever, desta vez por meio da boca de Alcínoo: “Os deuses decidiram; fiaram a catástrofe/ de homens para a poesia existir um dia.” (HOMERO, 2013, p. 144). Quanto a isso, eu posso afirmar que foi em meus piores momentos que mais me aproximei da poesia. Quando tudo vai bem parece que os versos zarpam da minha mente: os versos gostam dos náufragos. Veja só: “Ilíada” e “Odisseia” nos ajudam inclusive a meditar sobre a arte da escrita. Essas obras tocam em temas universais, por isso, são sempre joviais.
O herói é alguém em luta contra tudo e contra todos. Em Ílion, contra os troianos; no mar, contra Posêidon e seu filho, Polifemo; em Ítaca, contra os pretendentes de Penélope. E é contra Polifemo, filho de Posêidon, que se passa uma situação brilhante e divertida, considerada uma das primeiras piadas registradas na história, ao menos na história ocidental. O ciclope conseguiu devorar, em sua caverna, vários companheiros de Odisseu, e, certamente, teria devorado o herói, não fosse este astuto. É bom dizer que o herói tinha permanentemente ao seu lado Atena, a valente deusa da sabedoria. Enfim, o itáceo, para poder sair da caverna, fura o olho do ciclope, que, desesperado, abre a caverna (havia uma pedra enorme que a trancava, que nem vinte homens conseguiriam levantar), o que permite a fuga do herói. Antes disso, porém, os dois conversaram e Odisseu, interrogado, disse se chamar “Ninguém”. Então, quando o herói sai da caverna, Polifemo grita: “Ninguém me atacou.”
Concluindo os afazeres, mais dois homens presos/ prepara para a ceia. Em pé ao lado dele,/ nas mãos a copa tosca que eu havia enchido/ de vinho negro, dirigi-me então ao monstro:/ ‘Ciclope, bebe o vinho, depois de engolir/ a carne humana! Saibas que bebida nossa/ nau maturava! Trouxe como um dom, se nos reenviasse para casa, sensibilizado./ Mas te enfurias demais! Avesso à moira, cruel,/ que outro homem te visitará, mesmo se há inúmeros?’/ Falei e ele já foi bebendo. Tanto o vinho/ lhe aprouve, que ordenou que eu lhe servisse mais:/ ‘Dá-me outra dose de bom grado e diz teu nome/ agora, que amarás a xênia do anfitrião./ Videiras pensas pelas jeiras dos Ciclopes/ produzem vinho ótimo, pois nelas chove/ Zeus, mas parece néctar e ambrosia este!’/ Falou e eu repeti a dose licorosa./ Três vezes lhe servi, três vezes sorve o estúpido./ Quando a bebida atinge o seu precórdio, disse-lhe/ palavras-mel: ‘Ciclope, queres conhecer/ meu renomado nome? Eu te direi e, em troca,/ receberei de ti o dom que cabe ao hóspede:/ Ninguém me denomino. Minha mãe, meu pai,/ sócios, não há quem não me chama de ninguém./ Falei assim e, coração cruel, rebate: ‘Ninguém eu comerei por último, depois/ dos companheiros: tal é o dom que prometi.’/ Tomba em decúbito dorsal depois que fala,/ curvando a nuca enorme: hipnos, o torpor/ pandominante, o colhe: vinho e resto humano/ vomita goela afora. Bêbado, arrotava./ E eu retirei o pau do espesso pó, levando-o/ à flama. Nos amigos incuti coragem,/ para evitar que alguém por medo recuasse./ Tão logo a chama enrubra horrivelmente o tronco,/ embora verde, logo o retirei do fogo./ Tinha ao redor de mim os companheiros todos/ e um mega demo me inspirou bravura. Os sócios/ seguram a madeira pontiaguda e a fincam/ na parte interna do olho; erguendo-me, por cima,/ regiro-a, como, a trado, o lenho do navio/ é perfurado, enquanto, embaixo, puxam de ambos/ os lados a correia; o pau não para, avança;/ assim girávamos a ponta incandescente/ no olho, de onde escorria, quente, o sangue. Pálpebra/ e sobrancelha, o ardor do bafo requeimava,/ por causa da pupila em chama. A base chia/ ao fogo. Um fabro mete n’água um segure/ e o enxó, o estrídulo percute agudamente,/ quando os tempera (fonte de vigor do ferro),/ o olho ciclópico rechinava assim no pau./ Urlou assustadoramente e a rocha ecoa./ Recuamos de pavor. Arranca o toro do olho,/ do qual o sangue esguicha. Alucinando, atira-o/ longe de si. Então passou a urrar, clamando/ pelo socorro dos Ciclopes, moradores/ em grutas no arrabalde, nos ventosos píncaros./ Seus gritos trazem-nos de todos os quadrantes./ Querem saber, na boca do antro, o que o molesta:/ ‘A que se deve o grito lancinante em plena/ noite, que a todos despertou, ó Polifemo?/ Ninguém sequestra a rês – espero. Ou me equivoco?/ Ninguém te fere, astuto ou forte – espero. Ou quem?’/ E do interior, o Polifemo respondeu:/ ‘Ninguém me fere com astúcia, não com força.’/ Ao que eles proferiram palavras-alígeras:/ ‘Se, então, ninguém te agride e estás sozinho, não/ se evita facilmente a doença que nos manda/ Zeus. Roga ao deus do mar, teu pai, magno Posêidon!’ (HOMERO, 2013, p. 157-159).
Depois de tanto sofrimento, de tantos revezes, Odisseu retorna à Ítaca, primeiro aparecendo a Eumeu, o porcariço, depois para o seu filho e assim por diante. Mas, o que é interessante, é que a principal forma de Odisseu se revelar era por meio de uma cicatriz, esta adquirida em Parnaso quando, menino, no lar dos avós maternos, foi atacado por javalis. A cicatriz era a sua marca. Por extensão, é possível dizer que todo ser humano possui cicatrizes. No braço há a da vacina, mas na alma há milhares, que se manifestam por inibições, sintomas e angústias, como dizia Freud. Odisseu se identificava pela cicatriz e, de modo livre, é possível dizer que o ser humano também se manifesta dessa maneira.
Por fim, que fim levou Odisseu? Chegou à Ítaca e descansou? Chegou ao seu lar e tudo estava em ordem? Não, pois, o que nos mostra Homero é que os reis padecem. Agamêmnon foi morto pela própria esposa e por um comparsa dela assim que o atrida pisou em sua casa. E Odisseu teve de lidar contra os pretendentes de Penélope, que muito a atormentaram, bem como atazanaram e humilharam Telêmaco. Assim, o herói, sob ajuda de Atena, Zeus, Telêmaco e dois homens que lhe eram fiéis, o porcariço e o boiadeiro, foram para o combate contra os pretendentes e, enfim, os dizimaram. É dessa forma que se chega ao fim da epopeia? Com essa paz cheia de sangue? Sim e não. Sim porque Atena ajuda a selar a paz com os pais dos pretendentes, que queriam vingar a morte dos filhos; e não, porque Odisseu, tal qual indicou Tiresias, quando o herói foi ao Hades com ele se consultar, ainda teria que continuar suas pilhagens, ou, em outras palavras, suas viagens de conquista mundo afora. Odisseu estava destinado a não parar em lugar nenhum.
Homero. Odisseia. Trad. de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2013.