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Fotografia, pintura e geografia


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 01/11/2023
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             Sebastião Salgado é o fotógrafo que me vem à mente de imediato quando penso em fotografia enquanto arte, enquanto visão de mundo. Conheço o artista pelo menos desde o ensino médio, mas foi em 2014, em uma visita com os meus alunos ao Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, que Salgado me impactou. Acompanhado da professora de língua espanhola, fomos visitar a exposição “Frida Kahlo”, todavia, chegando ao MON, estava também disponível a deslumbrante exposição “Gênesis”, que me arrematou para outro universo. Desde então, a fotografia ocupa um lugar privilegiado em meus interesses, apesar das minhas fotos serem somente amadoras. Não ligo se as minhas fotos não forem excelentes se ficar patente o meu interesse, o meu amor por tal arte.

        Tenho três livros de Sebastião Salgado: “Êxodos” (de 2000), “Gênesis” (de 2013) e a autobiografia “Da minha terra à Terra”. Cada obra me impactou de um jeito.

“Êxodos”, de Sebastião Salgado

        “Êxodos” conta a história de pessoas de vários países que se viram forçadas a sair de suas casas. Segundo Salgado, raramente as pessoas se mudam de suas nações por conta própria, no mais das vezes por pressões sociais, políticas e econômicas. O livro em questão é de uma dureza assustadora, pois retrata, dentre tantas tragédias e mazelas, o massacre ocorrido em Ruanda, no ano de 1994.

       

Este livro conta a história da humanidade em trânsito. É uma história perturbadora, pois poucas pessoas abandonam a terra natal por vontade própria. Em geral elas se tornam migrantes, refugiadas ou exiladas constrangidas por forças que não têm como controlar, fugindo da pobreza, da repressão ou das guerras. Partem com os pertences que conseguem carregar, avançam como podem a bordo de frágeis embarcações, espremidas em trens e caminhões, a pé... Viajam sozinhas, com as famílias ou em grupos. Algumas sabem para onde estão indo, confiantes de que as espera uma vida melhor. Outras estão simplesmente em fuga, aliviadas por estarem vivas. Muitas não conseguirão chegar a lugar nenhum.

Durante seis anos, em quarenta países, trabalhei em meio a esses fugitivos – nas estradas ou nos campos de refugiados, ou ainda nas favelas urbanas onde eles frequentemente iam parar. Muitos atravessavam os piores momentos de suas vidas. Estavam assustados, mal alojados e humilhados. Mesmo assim, aceitavam ser fotografados porque, acredito, queriam que seu sofrimento fosse divulgado. Sempre que possível, eu lhes explicava que minha intenção era essa. Muitos não faziam mais do que postar-se diante de minha câmera e dirigir-se a ela como se fosse um microfone. (SALGADO, 2016, p. 7).

 

        “Gênesis”, por sua vez, não retrata primordialmente pessoas, ao contrário de “Êxodos”. Na verdade, “Gênesis” é fruto de um renascimento do fotógrafo, que de tanto acompanhar o sofrimento humano entrou em profundo mal-estar e chegou a abandonar as lentes. Retirando-se para Aimorés, sua cidade natal em Minas Gerais, e reflorestando a fazenda na qual passou a infância, o artista percebeu o poder da natureza de se regenerar, e o que tinha ido embora, como os pássaros, acabou voltando. De tal experiência veio o projeto “Gênesis”, que é o de retratar a vida em seu estado primitivo, daí a referência ao livro bíblico. Salgado até fotografa alguns povos originários, mas por serem povos que “tiveram um contato mínimo com o mundo exterior” (SALGADO, 2013, p. 8).

       

Minha abordagem não foi a de um jornalista, cientista ou antropólogo. No Gênesis, persegui um sonho romântico, de encontrar – e partilhar – um mundo primitivo mais invisível e inalcançável do que deveria ser. Meu objetivo não era o de ir aonde o homem nunca fora antes, embora a natureza selvagem seja geralmente encontrada em lugares bem inacessíveis. Eu apenas queria mostrar a natureza no seu auge, independentemente do lugar onde a encontrasse. Encontrei-a em espaços ilimitados da imensa biodiversidade que, surpreendentemente, cobre quase metade da superfície terrestre; em desertos enormes praticamente intactos; nas terras geladas do Antártico e do norte do planeta; em vastas extensões de floresta tropical e temperada; e em cadeias de montanhas de um esplendor que nos causam profundo respeito. A descoberta desse mundo virgem e de grande beleza foi a experiência mais gratificante da minha vida” (SALGADO, 2013, p. 7).

 

        Se fossem reunidos os dois livros indicados em termos de tempo de cliques fotográficos, talvez não deem mais do que uma ou duas horas. Porém, quem é que pode calcular o tempo que o mestre das câmeras levou para conceber esses projetos magnânimos? É o resultado de uma vida, de uma visão de mundo genuína e perspicaz.

“Gênesis”, de Sebastião Salgado 

        Como comparar os registros de Sebastião Salgado, que são memórias da humanidade e da vida como um todo, com cliques descompromissados a partir de telefones celulares? Há fotografia e arte em celulares, porém, segundo o próprio Salgado já declarou em entrevistas, no mais das vezes o que se pratica com essas fotografias imediatistas é uma comunicação sem compromissos com o amanhã. Pelo contrário, segundo Salgado, as fotografias tiradas pelos nossos pais, quando éramos crianças, e cuidadosamente reveladas, com o intuito de memória, elas seriam fotografia no sentido entendido pelo mestre mineiro.

        Sebastião Salgado é natural de Aimorés, mas há décadas é cidadão do mundo. Ele morou vários anos na Inglaterra, onde trabalhou como economista (sua formação é Economia), mas há décadas reside em Paris. Porém, ele escolheu o mundo como o seu lar, tendo na América do Sul e na África lugares especiais para as suas lentes.

        O trabalho do fotógrafo me faz lembrar, com as devidas ressalvas, a série de pinturas que Cândido Portinari (1903-1962) fez dos retirantes. Assim como o fotógrafo, o pintor retratou pessoas se deslocando de sua terra natal atrás de um mísero pedaço de pão. Visitar o Museu de Arte de São Paulo (MASP) é uma das melhores atividades que já fiz na capital paulista. Nesse maravilhoso museu de arquitetura brutalista há obras colossais de Portinari, como a gigante “Retirantes”, de 1944, cuja metragem é de 180 x 190 centímetros.

“Retirantes”, de Portinari

 

        Convergente a Portinari e a Salgado, outro pensador que me faz lembrar nesse conjunto de valores é Josué de Castro (1908-1973), outro cidadão do mundo, que trabalhou como médico e exerceu a Presidência do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).

Josué de Castro

 

O tema central dos trabalhos de Castro foi a fome, prova disso são os títulos de seus livros: “Geografia da fome”, “Geopolítica da fome” e “O livro negro da fome”. Por causa da fome os seres humanos saem de onde for para procurarem um pedaço de pão e trabalham onde for preciso, como nos mangues. Afirma Josué de Castro: “A fome e a guerra não obedecem a qualquer lei natural. São, na realidade, criações humanas.” (CASTRO, 1957, p. 63).

        A fonte da minha cultura, como busquei ilustrar, é diversa, da pintura à geografia à fotografia. Ninguém pode deixar nada para trás. Uma exposição ensina tanto quanto um livro (a depender, até mais). Sob essa complexa influência intelectual é que me propus, logo após a conclusão do doutorado, estudar o problema da imigração forçada dos venezuelanos. Para tanto, era preciso conhecer, ainda que só um pouco, de fotografia, de pintura e de geografia da fome.

        Em meu primeiro livro, “Entre médicos e imigrantes”, busquei realizar tanto um trabalho filosófico, algo que é possível verificar em especial nos três primeiros capítulos, quanto uma abordagem fotográfica, o que se vê no último capítulo. Não foi fácil conceber um trabalho sobre algo tão lastimável quanto a imigração forçada dos venezuelanos. Eu ficava horas e horas em praças e em abrigos conversando com as pessoas para, só então, fotografar. Sebastião Salgado, para fotografar, passa dias e meses com as pessoas, para só então colocar as lentes para funcionar.

 

Imigrante descansando em um pneu no horário de almoço. O interessante é que dentro desse grande objeto ainda tinham mais duas pessoas deitadas. Fotografia do livro “Travessias” (2020).

 

        Quanto ao meu terceiro livro, “Travessias”, segui sob a influência da fotografia, da pintura e da geografia da fome. Há referências explícitas a temas da geografia, como o poema “Mapas”, e o último capítulo se constitui de fotografias de Santa Elena de Uairén (Venezuela) e Pacaraima (Roraima). Fiquei nesses lugares quase duas semanas para poder fotografar. E só fiz isso após muita conversa. Geralmente as pessoas em estado de calamidade têm receio das lentes, então, quem quer fotografar primeiro tem de se colocar ao lado de quem quer conhecer. Colocar-se literalmente ao lado, com os ouvidos à disposição.

 

MAPAS

 

Conheço pessoas que, olhando para mapas,

esquecem que toda projeção é uma

representação,

que não há mapas 1:1

e que tudo que passa pela ótica humana

é passível de ilusões.

A óptica caminha lado a lado com a ilusão –

mistério dos mágicos.

 

O que pensar, porém, se houvesse um mapa

em tamanho real?

Mais do que pensar, talvez seria preciso

caminhar, caminhar, caminhar,

e quem é atlético o suficiente para a realidade?

 

A representação traz muitos confortos,

mas, tal qual na Alegoria da Caverna,

pode acorrentar e cegar.

Pessimismo?

Talvez niilismo?

Prefiro pensar que o conhecimento exige coragem

e que o cientista deve ter uma mente sempre

andante.

 

        Após mais de cinco anos de estudos sobre os refugiados venezuelanos, posso dizer que passei a compreender um pouco mais dos motivos pelos quais tantas pessoas saíram da Venezuela para se arriscar no Brasil. Quanto ao processo de escrita, quanto mais eu escrevo, mais fico repleto de lacunas. Os retirantes de Portinari, os trabalhadores do mangue de Castro e as pessoas em êxodo de Salgado não cansam de se reproduzir. Quem é que consegue lidar com tamanha complexidade?

 

 

Josué de Castro. Geopolítica da fome. São Paulo: Editora Brasiliense, 1957.

Sebastião Salgado. Êxodos. Colônia: Taschen, 2016.

_______________. Gênesis. Colônia: Taschen, 2013.

 

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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