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Entre Linhas


Por: Jacilene Cruz
Data: 22/07/2024
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Deixando a infância de lado[1]

Jacilene Cruz

 Estava na casa de uma amiga, a Yasnara, final de semana passado, e ela, que me ler sempre, refletiu que, de forma recorrente, volto ao passado e às memórias infantis para escrever meus textos. Me senti lisonjeada e desafiada ao mesmo tempo. Como não recuso um desafio, tentarei não colocar minha infância nessa escrita de hoje.

Mas isso não é uma promessa.

Venho escrevendo mentalmente sobre Belchior há tempos. O excelentíssimo compositor e cantor cearense. E olha só a coincidência, a Yasnara também é do Ceará, embora os seus cabelos não sejam mais negros que as asas da graúna, nem mais longos que seu talhe de palmeira. (Alencar, 2017, p. 09).

Abandonemos esse último e voltemos ao primeiro conterrâneo da minha amiga, pois ouvi-lo ou lê-lo é sublime, extasiante. Falo isso sem pedir licença aos mais conservadores, porque Belchior é poesia pura, o suprassumo das palavras bem-ditas, a mais alta extirpe pronunciada.

As imagens sugeridas me tiram o fôlego. E se você é um amante de Como nossos pais, Medo de Avião, Fotografia 3x4, Todo sujo de batom, Apenas um rapaz latino americano, entre tantas, repita comigo:  elas nos tiram do chão, levitamos.

No trecho a seguir, de Paralelas temos um ótimo exemplo: “E as paralelas dos pneus n'água das ruas/ São duas estradas nuas/ Em que foges do que é teu [...]” (Belchior, 2002a, s/p).

Freud, que não é cearense “penso” eu, em Escritores Criativos e Devaneios pontua:

 

[...] na verdade, essa perspectiva é possível. Afinal, os próprios escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum, assegurando-nos com muita frequência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o último homem morrerá o último poeta.” (Freud. 1972, p. 70).

 

Como hoje é um dia de concordâncias, igualmente concordo com o psicanalista inglês. Se a letra do poeta de Sobral não te levou até uma tarde de céu cinza, chuvosa e, em lágrimas você se pegou pensando no que deixou pra trás, assim como ficam as marcas dos pneus, sinto muito. Bom sujeito você não é[2], uma vez que somos todos poetas e até a hora da nossa morte, haveremos de ser. Por essa razão, vamos nos entregar ao fantasiar.

Além de Paralelas que, para mim, é uma das mais belas. Outras canções embalam a poeticidade de muita gente, tanto da minha saudosista geração, quanto de pessoas que enxergam o cantor sobralense como eu.

Entretanto, a poesia que tem dado corda aos meus encantamentos ultimamente é A Divina Comédia Humana. Não a do grande renascentista italiano, mas a do pequeno trovador brasileiro. Podem ter certeza, já viajei tanto nessa música que até perdi o senso.

Mas antes de dispor parte da letra aqui, fica o aviso: você está sujeito a ter muitos pensamentos criativos. Permita-se:

 

Divina Comédia Humana - Belchior

 

Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol

Quando você entrou em mim como um sol no quintal

Aí um analista, amigo meu, disse que desse jeito não vou ser feliz direito

Porque o amor é uma coisa mais profunda que um encontro casual

 

[...]

 

Deixando a profundidade de lado

Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia

Fazendo tudo e de novo dizendo sim à paixão, morando na filosofia

 

(Belchior, 2002b, s/p – destaque meu)

 

Além de nos colocar no lugar do Taffarel naquela cobrança de Roberto Baggio quando da final da copa de 1994, o autor vem com a história de que é possível dizer “sim a paixão, morando na filosofia.” (Belchior, 2002b, s/p).

Hã??!!

O verso em destaque nos desperta a sensação de estar fora do cinema e ainda assistindo ao filme.

É como ser louco e lúcido. É ouvir um fibromiálgico dizer:

? Está tudo bem.

Sim, o ilustre cearense fez isso. Nos colocou numa contradição reconfortante: é possível ser um apaixonado racional.

Com o excerto da música, creio que você devaneou como um poeta, provando que Freud tem razão. E eu cumpri a promessa não feita de escrever sem voltar a infância. Ao menos a minha.

 

REFERÊNCIAS

 

ALENCAR, José de, 1829-1877. Iracema [recurso eletrônico] / José de Alencar. – 2. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017. – (Série prazer de ler; n. 8 PDF)

 

DIVINA COMÉDIA HUMANA. Intérprete: Belchior. Compositor: Belchior. In: Gold.  Rio de Janeiro. Universal Music. 2002b, faixa 11.

 

PARALELAS. Intérprete: Belchior. Compositor: Belchior. In: Gold.  Rio de Janeiro. Universal Music. 2002a, faixa 8.

 

FREUD, Sigmund. Gradiva de Jessen e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1972.



[1] Paráfrase do 1º verso, da 3ª estrofe da música tema dessa crônica, Paralelas.

[2] Também paráfrase da 2ª estrofe da música Samba da Minha Terra, de Dorival Caymmi

Jacilene Cruz


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