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Coringa: o filme que revela uma sociedade doente


Por: Simony Ornellas Thomazini
Data: 01/11/2019
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Assisti Coringa recentemente e saí da sala de cinema encantada e com inúmeras divagações a respeito do filme.  Uma obra cinematográfica sensacional, com uma atuação do ator Joaquin Phoenix memorável, dentre outros fatores cinematográficos dignos de nota.

Porém, o que escrevo aqui, é sobre minha visão enquanto psicóloga e psicanalista.

Uma das frases que circula muito pelas redes sociais e que me chamou a atenção é: “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”.  O que ele quis dizer com isso?

As pessoas reagem muito mal aquilo que é diferente. Algumas tem medo de encarar essa realidade que lhes é estranha. No começo do filme já presenciamos um momento em que Arthur é agredido e chamado de “esquisito”. Depois, assistimos outra cena em que ele ri descontroladamente devido ao seu distúrbio psicológico, causando notável desconforto às pessoas ao seu redor.

Nossa sociedade é incapaz de lidar com o diferente. Arthur Fleck não possuía um comportamento tido como usual, comum, para a maioria das pessoas, e talvez por isso, sentia a necessidade de agir sempre como se não tivesse um distúrbio psicológico.

 Imagine como deve ser para alguém sustentar isso o tempo todo?

Coringa não nasceu Coringa

Há uma virada no filme.  Arthur Fleck transforma-se definitivamente em Coringa. Depois de tantos contratempos, há uma cena magistral registrando esse momento. Até então, vemos Arthur como um personagem deslocado, perturbado e incomodado com a própria existência.

Várias são as suas tentativas para encontrar o seu lugar no mundo. Inúmeras são as pessoas que dificultaram isso em toda a sua trajetória. A omissão da sua história por parte de sua mãe, a negação de seu pai, amigos que o rechaçam, e até mesmo um apresentador de programa que o ridiculariza na TV. Um apresentador que, inclusive, era sua fonte de inspiração e admiração.

Arthur comparece aos atendimentos com o que parece ser uma assistente social, porém, ele diz a ela:

“Você faz as mesmas perguntas todos os dias”. “Como vai seu trabalho?” “Está tendo pensamentos negativos? Só o que eu tenho são pensamentos negativos”.

Presenciamos aqui alguém que não o escuta, alguém que apenas cumpre os protocolos, deixando-o a margem, mais uma vez, de um sistema doente.

Diante de todos esses maltratos, assistimos então, ao nascimento de Coringa.  

Uma sociedade doente

Nas diversas cenas de agressões físicas e verbais Arthur se questiona: “por que as pessoas são assim? Por que são tão rudes o tempo todo? O que há com todo mundo”?

O espectador sente a sua dor, o seu desespero e o desprezo das outras pessoas quando tudo o que ele desejava, era ser compreendido.

Diante de tudo isso, a única saída encontrada por ele é totalmente inaceitável socialmente: agredindo e matando.

Podemos diante disso nos interrogar: A sociedade molda o ser humano? É inegável a sua contribuição para que a transformação de Arthur Fleck em Coringa ocorresse.

Não estou dizendo aqui que é correto matar ou agredir alguém devido tais circunstâncias, mas presenciamos claramente no filme, o quanto a sociedade moldou Coringa.

Assistimos também uma Gotham City da década de 1970 devastada. E podemos com isso, fazer uma analogia aos tempos atuais em que vemos diariamente a precarização das políticas públicas, a desigualdade social, a pobreza, a violência, a marginalização da saúde mental, dentre outras questões de saúde pública, sociais, ambientais que necessitam de urgente assistência, porém, a prioridade do Estado nos parece outras.

Cada pessoa tem a sua bagagem

É impossível sair ileso de Coringa. Talvez você tenha odiado. Talvez você esperasse mais ação, ou que fosse mais “fiel” a história que conhecemos nos quadrinhos. Talvez ainda você não tenha gostado de encarar a realidade nua e crua na tela do cinema, afinal, vamos ao cinema para se divertir não é mesmo?  E talvez você tenha ficado impressionada(o), assim como eu.

A verdade é que Coringa trouxe a mim e contribui a nós, novas perspectivas. Julgar uma pessoa é fácil, difícil é compreendê-la. Entender a sua trajetória, ou ainda, o mínimo do mínimo, sermos humanos uns para com os outros.

Coringa não nasceu Coringa. Por que julgamos as pessoas discriminando o seu contexto, desconsiderando a sua bagagem, aceitando-a como ela é? Novamente repito que agredir e matar não é correto, mas, quanto a sociedade contribuiu para suas ações?

Será que Arthur Fleck teria se transformado em Coringa se ele tivesse sido bem tratado no emprego, pelo apresentador de programa, pelo seu pai, e por todas as outras pessoas que não o ouviram, mas, apenas julgaram?

Será que a maneira como tratamos as pessoas não as afetam diretamente ou indiretamente na maneira delas agirem?

É claro que podemos refazer nossos caminhos, mudar nosso horizonte e fazer melhor com o que nos fizeram, mas quantas pessoas não possuem oportunidades para isso? Quantas pessoas estão à margem sofrendo as ações doentias do Estado? Quantas pessoas são verdadeiramente ouvidas em suas dores existenciais quando procuram ajuda profissional?

“Só espero que minha morte valha mais centavos que minha vida” é o que está escrito em seu caderno fazendo-o questionar-se mais uma vez sobre a sua história.

Gotham City acaba em chamas, chamas estas, anunciando que a cidade precisará de um herói para salvá-los. Na ficção, sabemos bem quem poderá ilusoriamente salvá-los. Mas, e aqui, o que fazemos com nossa sociedade doente?

Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta alemão diz que: “Infeliz é a nação que precisa de heróis”.

Não precisamos de heróis para nos salvar das chamas da indiferença, do descaso, da desumanidade, precisamos de pessoas humanas. E isso hoje, nos parece muito!

Simony Ornellas Thomazini


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