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Sentença: “Só quando o compassivo em sua compaixão se relaciona com seu padecente de tal maneira que compreende no sentido mais rigoroso que é de sua causa que se trata, só quando sabe identificar-se com o que padece de tal maneira que, lutando por uma explicação, luta por si mesmo, abjurando de toda irreflexão, tibieza e covardia, só então a compaixão adquiri significado e só ai encontra sentido [...].” - Søren Aabye Kierkegaard in O Conceito de Angústia, p.130.

Na nossa conjuntura atual, não é difícil chegar à conclusão de que todos nós estamos à procura de um pouquinho de paz e sossego. Neste mundo turbulento e estressante, o conforto pessoal tornou-se a nossa grande meta. Entretanto, em alguns momentos da nossa vida somos levados a escolher entre o desejado conforto ou abraçar certos infortúnios. Um exemplo é quando temos que decidir entre passar a noite em claro em companhia do amigo que perdeu seu ente querido ou desfrutar de um doce e suave sono depois de um dia cheio de trabalho. Momentos assim nos testam a escolher entre nossas necessidades particulares ou deixá-las para abraçar a dor alheia e, então para não perder o sossego e ao mesmo tempo não parecermos indelicados, não fazemos nem um nem outro, mas elaboramos um sutil mecanismo de fuga, sem parecer que estamos fugindo da tarefa de sermos compassivos. Este mecanismo se chama Flatus vocis [os sons vazios para fora]. Isto é, fazemos declarações destituídas de sentido e significado. Nós dizemos: “Amigo, meus pêsames!”, mas no íntimo, não queremos nos envolver demais a ponto de viver os pêsames. Se você ainda não compreendeu como muitas das nossas declarações perdem seu sentido no ar da fala, prossiga na leitura, pois o que o filósofo e teólogo dinamarquês do século XIX, Søren Aabye Kierkegaard, procura responder nessa sua longa sentença é exatamente como nosso amor perde seu significado e se torna em eco obscuro.

Para Kierkegaard, as nossas palavras só encontram sentido e significado quando posta em prática nos levando a um envolvimento com a realidade. Segundo o filósofo, de fato, a moral ou a verdade “sempre teve muitos que a proclamaram em altos brados”, porém a simples proclamação daquilo que é correto não é suficiente para dar sentido. Kierkegaard diz que é preciso “saber se um homem quer, no sentido mais profundo, conhecer a verdade, quer deixá-la permear todo o seu ser” e por fim, “assumir todas as suas consequências.” Kierkegaard procura mostrar com mais precisão essa relação entre declaração de fé e vida virtuosa quando se referiu à prática da compaixão. Para nós, homens modernos e adoradores do conforto, é muito mais fácil dizer ao nosso desfalecido amigo: “Que Deus lhe traga alegria!”, do que de fato, produzir a alegria, sendo ousados ao ponto de sairmos do aconchego de nossa casa, em uma noite chuvosa e, sem receio, “invadir” o escuro quarto de nosso amigo e lhe iluminar com palavras de ânimo, com outras de correção e, se preciso, molhar com lágrimas o mesmo chão. O que Kierkgaard faz em sua sentença é deixar claro pelo menos três evidências inegociáveis para reconhecer se de fato estamos sendo compassivos para além dos sons vazios para fora.

 

A primeira evidência é se a nossa compaixão produz relacionamento. Somente quando o “compassivo em sua compaixão se relaciona com seu padecente [...]”. Quer dizer, somente quando quem diz ter compaixão estabelece vínculos íntimos na relação com o sofredor, é que ele pode ser considerado um compassivo. A segunda evidência é se a compaixão  causa um mesmo sentimento para com o outro. Somente quando o compassivo “compreende no sentido mais rigoroso que é de sua causa que se trata [...]”. Quer dizer, apenas quando a dor do sofredor dói naquele que se diz compadecido, é que de fato ele pode ser classificado como um compassivo. A terceira evidência é se a compaixão nos leva a agir. Somente quando o compassivo consegue “identificar-se com o que padece de tal maneira que, lutando por uma explicação, luta por si mesmo, abjurando de toda irreflexão, tibieza e covardia [...]”. Quer dizer, tão somente quando àquele que se diz compassivo entende profundamente que os conflitos internos de seu próximo são os seus próprios, e assim ele lança mão de toda preguiça ou covardia para com toda dedicação física e intelectual buscar solucionar os problemas de seu semelhante, é que ele pode ser julgado como compassivo.

Søren Kierkeaard vem jogar um balde de água fria na nossa supérflua noção de compaixão por meio dessa sentença, mostrando que a simples pronúncia de determinadas palavras não tem o poder inerente de deflagrar, isto é, fazer surgir a realidade da coisa nomeada. É preciso algo a mais, é preciso vivência e envolvimento profundo para dizer, “Me compadeço!”. A compaixão, para ter sentido, precisa nos levar a nos relacionarmos, sentirmos a dor e buscarmos resolver os conflitos daquele que padece. Se não for assim, é mero formalismo moral.

Obra: KIERKEGAARD, Søren Aabye. O Conceito de Angústia. 3ª ed. Petrópolis, RJ. Editora Vozes, 2015.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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