A verdadeira espiritualidade
Romanos 2.28-29 (ARA): “Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente na carne. Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus.”
No texto da semana passada meditamos no versículo 27 de Romanos 2. Vimos Paulo se dirigindo ao judeu circunciso, porém transgressor da Lei de Deus. O apóstolo declara que o gentio crente julgará o judeu descrente e transgressor, “(...) não obstante” ou ainda que o judeu possua “(...) a letra”, isto é, a lesgislação, as alianças, as promessas, etc., (Cf. Rm 9.1-5), “(...) e a circuncisão”, que era o sinal visível do pacto de Israel com Deus.
Agora, nos versos 28 e 29 (os últimos do capítulo 2), Paulo apresenta a verdadeira natureza da circuncisão e da identidade judaica. Depois de refutar a falsa concepção da natureza e poder da circuncisão que havia naquele período, Paulo passa agora a afirmar a respeito do sentido desse sinal antigo, relacionando-o à identidade do povo do pacto, os judeus.
No v. 28, Paulo começa com afirmações negativas. Ele escreve quem não é judeu e qual não é a circuncisão: “não é judeu” e “nem é circuncisão” (v.28). Em seguida, no v. 29, as afirmações são positivias, e Paulo passa a dizer quem é verdadeiramente judeu e o que é a verdeira circuncisão: “judeu é aquele” e “circuncisão, a que é” (v. 29). Portanto, circuncisão e identidade judaica são o cerne desse trecho final do capítulo 2 de Romanos. Ao afirmar sobre a veracidade e falsidade de um ritual religioso e de uma identidade, Paulo não pretende dizer que o que havia sido ordenado no Antigo Testamento sobre essas realidades estava errado, mas sim que a compreensão espiritual destes assuntos havia sido ofuscada pela hipocrisia e pela falsa confiança em externalidades.
Em primeiro lugar, conforme comenta William Hendriksen, “(...) Os oponentes de Paulo entre os judeus estavam edificando sua esperança para a eternidade sobre o mero fato de que eram judeus, e, portanto, como pensavam, o povo eleito de Deus.”.[1] Então, Paulo diz que não é judeu “quem o é apenas exteriormente,”. Ser judeu apenas exteriormente para Paulo é o indivíduo que “(...) em virtude de descendência física ou biológica”[2] se considera um judeu. Nos dias de João Batista, por exemplo, os judeus acreditavam que eram judeus simplesmente porque eram “descendentes de Abraão” (Cf. Mt 3.9; Jo 8. 33, 39). É interessante notar também que os termos gregos que se traduzem para “apenas exteriormente”, podem ser traduzidos também como “no aberto” ou “visivelmente”.[3] Não é judeu aquele que apenas aparenta ser, assim como não é verdadeiramente cristão apenas quem aparenta ser.
Em segundo lugar, muitos judeus pensavam que a circuncisão poderia ser reduzida a uma cirurgia física, “somente na carne.” Ou seja, para muitos judeus, a simples supressão do prepúcio masculino, sendo um compromisso com o código escrito – a letra da lei – era suficiente para lhes conferir a graça salvadora de Deus. Mas, novamente, Paulo diz que não é assim. O que é, então, ser verdadeiramente um judeu? E qual é a verdadeira circuncisão?
No v. 29, Paulo responde. Em primeiro lugar, ele diz que o judeu verdadeiro, genuíno, é o judeu espiritual, “aquele que o é interiormente,”. O termo original em grego traduzido para “interiormente”, também pode ser traduzido como “em segredo”. Que isto significa? Que é verdadeiramente judeu – o indivíduo que faz parte do povo eleito de Deus – aquele que no seu íntimo, onde só o Senhor que sonda os corações pode ver, consagra seu ser a Ele: seus pensamentos, desejos, intenções e motivações. Esse é o verdadeiro judeu.
Em segundo lugar, Paulo diz qual é a verdadeira circuncisão, corte ou cirurgia; é aquela “que é do coração, no espírito, não segundo a letra,”. Do coração, no espírito, não segundo a letra? Paulo faz uma distinção muito importante – especialmente para a compreensão de passagens subsequentes, como Rm 7.6 e 8.4 – entre gramma (letra ou código) e pneuma (o Espírito). Segundo João Calvino, “(...) por letra, ele quer dizer o rito externo, sem vida espiritual; e por espírito, ele quer dizer a substância [finem] deste rito, a qual é espiritual”.[4]
A verdadeira circuncisão é uma operação espiritual, uma obra do Espírito Santo de Deus, realizada internamente “(...) de tal maneira que um código escrito e exterior nunca poderia realizar.”[5] Enquanto a circuncisão física era uma retirada de uma parte do corpo, a circuncisão espiritual é a operação do Espírito Santo de Deus em nosso coração, removendo o princípio da carne e da velha natureza de nosso ser, colocando em nossa natureza interna um princípio novo de vida consagrada a Deus (Cf. Rm 7.6; 2 Co 3.6, 18; Gl 5.16-23). Como declarou o teólogo presbiteriano Louis Berkhof, “A regeneração é o ato de Deus pelo qual o princípio da nova vida é implantado no homem, e a disposição dominante da alma é tornada santa.”.[6] Podemos concluir esta parte dizendo que o que Paulo está procurando aqui é “(...) uma circuncisão do coração que substitua completamente o ritual físico, e não que meramente o complemente.”.[7]
Por fim, escreve Paulo sobre a verdadeira circuncisão “cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus”. Aqui aparece um jogo de palavras que percorre todo o caminho da história dos judeus. A palavvra Judeu, sendo derivada de Judá, significa “Louvado”. Muitos dentre os judeus louvavam a si mesmos, e eram sedentos por receber louvor dos homens por suas externalidades (Cf. Mt 6.1-8, 16-18; 23.5-12). Porém, eles não eram dignos de louvor, pois um “(...) judeu genuíno é aquele cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus.”[8]
Os homens só podem visualizar a externalidade, aquilo que está “no aberto”, que está visível. Porém, Deus é quem sonda os corações e mentes (Cf. Jr 17.10; Rm 8.27), e quem, por meio de Cristo, julga os segredos dos homens (Cf. Rm 2.16). Por isso, a verdadeira circuncisão e a verdadeira identidade do povo de Deus está em como elas são coram Deo (diante de Deus). Calvino, comentado sobre isso, apontou com precisão que “(...) o apóstolo nega que devamos viver satisfeitos com o que é recomendado pela opinião humana. Esta é, com frequência, iludida pelo esplendor externo. Devemos, antes, nos satisfazer com os olhos de Deus, dos quais os mais profundo segredos do coração não podem ocultar-se.”[9]
Hoje, 31/12, chegamos – pela misericórdia de Deus – ao fim deste ano, e chegamos também ao fim da exposição sequencial de Romanos, capítulo 2, iniciada no dia 22/01. Aprendemos ao longo deste ano com esse capítulo que Deus é imparcial em seu juízo. Vimos o apóstolo advertir-nos contra a hipocrisia religiosa, destacando que aqueles que condenam os outros, mas cometem os mesmos pecados, não escaparão do juízo de Deus. Lemos Paulo enfatizar que o julgamento de Deus é justo e baseado na verdade, não em aparências ou privilégios, como ser judeu ou gentio. Depois, aprendemos com Paulo que a verdadeira piedade diante de Deus não depende apenas de ouvir a lei, mas de praticá-la.
E, aprendemos nestas últimas semanas de dezembro, que a circuncisão, um símbolo exterior da antiga aliança com Deus,[10] só tinha valor se acompanhada de obediência, e que Deus considera a pureza de coração – operada pelo Espírito Santo – e não apenas os rituais externos e vazios. A essência da verdadeira espiritualidade está na transformação dos nossos afetos, que por obra do Espírito, os redime e os direciona para Deus.[11]
Em suma, o capítulo 2 sublinha que todos, independentemente de sua origem, estão sujeitos ao julgamento de Deus e necessitam de salvação. Paulo preparou os seus leitores – judeus e gentios – para que, abandonando qualquer esperança de salvação em si mesmos, possam agora conhecer, na leitura do capítulo 3, o verdadeiro caminho de Deus para a justificação dos pecadores. Estou ansioso para, junto com você, querido leitor, conhecer mais desse caminho que nos salva e nos reconcilia com o nosso Criador.
Soli Deo Glória.
[1]HENDRIKSEN, William. Comentários do Novo Testamento - Romanos. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2011. p. 140.
[2]Ibidem, p. 140.
[3]STOTT, John. Romanos. São Paulo: ABU Editora, 2007, p. 104.
[4]CALVINO, João. Romanos. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2014, p. 118.
[5]STOTT, John. Romanos. São Paulo: ABU Editora, 2007, p. 106.
[6]BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 432
[7] Dunn, vol. 38A, p. 127. Citado por STOTT, John, in Romanos. São Paulo: ABU Editora, 2007, p. 105.
[8]HENDRIKSEN, William. Comentários do Novo Testamento - Romanos. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2011. p. 140.
[9]CALVINO, João. Romanos. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2014, p. 119.
[10]É importante destacar que para os cristãos, a circuncisão se faz desnecessária, sendo substituída pelo rito do batismo. Conforme Berkhof, “(...) Na nova dispensação o batismo, pela autoridade divina, substitui a circuncisão como o sinal e selo iniciatório da aliança da graça. A Escritura insiste vigorosamente em que a circuncisão não pode servir como tal, At 15.1,2; 21.21; Gl 2.3-5; 5.2-6; 6;12,13,15.” In BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 585.
[11]Nenhum livro me impactou mais sobre a natureza da verdadeira espiritualidade, ou essência da verdadeira religião, do que a obra Faith Beyond Feelings, de 1746, do puritano norte-americano Jonathan Edwards (1703-1758). A obra foi resumida ao longo dos anos por editores ingleses, e o resumo foi traduzido para o português pela Editora Palavra, em 2008, com o título Uma fé mais forte que as emoções – discernindo a essência da verdadeira espiritualidade. Sobre o tema, também é digno de menção a obra Verdadeira Espiritualidade (1999), do pastor e apologista cristão Francis Schaeffer (1912-1984), publicada no Brasil pela editora presbiteriana Cultura Cristã.