A generic square placeholder image with rounded corners in a figure.


O juízo hipócrita


Por: Fernando Razente
Data: 29/01/2024
  • Compartilhar:

Romanos 2.1 (ARA): “Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois pratica as próprias coisas que condenas.”

Chegamos agora – neste projeto de exposição bíblica e sequencial – no capítulo 2 da carta Aos Romanos. Após uma longa denúncia contra a rebelião, incredulidade, reprovação e imoralidade dos gentios (Rm 1.18-32), Paulo a partir de agora se dirige ao crítico moralista hipócrita, tendo em vista especialmente o ethos[1] judáico distorcido de seu tempo.

De fato, há uma dificuldade hermenêutica em relação ao sentido do substantivo “homem” (?νθρωπε) do versículo 1, sendo este o alvo de Paulo. Para alguns estudiosos, trata-se ainda dos “gentios” do capítulo 1. Para outros, Paulo estaria mesmo se referindo ao ethos judaíco. Ainda outros enxergam em “homem” a unidade da raça humana debaixo do pecado.

Embora a própria Escritura defenda este último ponto e, a história nos mostre que entre os gentios também haviam moralistas que precisavam ser corrigidos (como Sêneca, filósofo estóico do 1º século d.C.), sou da opinião que Paulo ao usar “homem”  – dado o contexto subsequente, especialmente os vs. de 9-12 – usou de maneira tácita para se referir ao ethos dos judeus  propriamente. Pois, se observarmos bem, o argumento de Paulo se desenvolverá progressivamente até um tratamento mais aberto da hipocrisia do ethos judáico a partir de 2.17 até 3.20, proporcionando assim uma unidade de sentido em todo o texto.

Devemos ainda nos lembrar – o que creio, reforça minha opinião – que o objetivo de Paulo nos três primeiros capítulos é mostrar que toda a raça humana está debaixo do pecado; sobre os gentios que pecam contra o conhecimento de Deus revelado na natureza e consciência, Paulo tratou no capítulo 1, e agora no capítulo 2, Paulo tratará do ethos judáico que transgride o conhecimento da revelação verbal e escrita.

Sobre essa diferença de revelação de Deus dada a gentios e judeus, o expositor Rev. Hernandes Dias Lopes argumenta que os judeus “(...) receberam a revelação especial, as Escrituras; e os gentios, a revelação natural. Por não viverem de acordo com a revelação recebida, ambos são indesculpáveis perante Deus.” Portanto, concluo usando as palavras de Stott, é “(...) um dos principais propósitos do apóstolo ao escrever [Romanos] (...) demonstrar que tanto judeus quanto gentios estão em pé de igualdade no que se refere ao pecado e à salvação.”

Pois bem, agora que sabemos a quem o substantivo “homem” está sendo aplicado, precisamos avançar na compreensão de cada partícula da Sagrada Palavra, a fim de que por ela sejamos edificados. Paulo começa dizendo: “Portanto, és indesculpável, ó homem..”

O estilo do discurso de Paulo é de uma diatribe (perguntas retóricas e diálogo com um oponente imaginário). Diante de si, está o “homem”, um judeu de ethos moralista que, dada a sua cultura e assentimento com a Lei de Deus, certamente concordaria com cada palavra de Paulo sobre a depravação gentílica no capítulo primeiro. Mas para a surpresa desse moralista, Paulo passa agora a atacá-lo pessoalmente!

Paulo quer mostrar ao seu oponente que se por um lado os gentios “(...) não tem desculpa” (Rm 1.20 BJ) por terem reprovado o conhecimento de Deus revelado na natureza praticando imoralidades, por outro, o judeu moralista também não tem nenhuma desefa a seu favor; ele é um homo inexcusabilis [homem que não pode fugir, escapar ou recusar sua sentença].

Mas o judeu poderia argumentar com Paulo sobre quando ou como ele se torna indesculpável. Adiantando esse questionamento, Paulo responde: “(...) quando julgas, quem quer que sejas” Por “quem quer que sejas”, devemos entender – como aparece em algumas outras traduções – no sentido de “não importando quem você é” (NAA) ou “sejas quem for” (BKJ). Seja você quem for, uma pessoa de alta posição da sociedade ou alguém ilustre entre a ralé, quando está a julgar (κρ?νων), quando “te arvoras como juiz” (BJ), fazendo uma avaliação moral dos gentios, você, ó judeu se torna indesculpável! Paulo ainda reforça essa proposição na sequência do verso, declarando ao seu oponente judeu que “(...) no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas”.

Essa declaração é impressionante e curiosa! À primeira vista, esta porção das Escrituras pode parecer contraditória: estaríamos vendo as Escrituras condenar um juízo judaico sobre a sociedade gentílica quando a própria Escritura faz o mesmo (Cf. Rm 1)? Seria aqui uma contradição que Paulo não percebeu em seu argumento? Ou seria uma proibição absoluta do juízo humano? Seria uma prova daquela curiosa doutrina de que “jamais devemos julgar os outros!”? Certamente que nenhuma dessas possibilidades e, para entender essa parte, devemos seguir adiante no texto sagrado.

Paulo mostra-nos a seguir que não é o juízo de valor em si mesmo que torna o seu interlocutor judeu indesculpável ou qualquer outro ser humano. Afinal, como escrevi acima, a Bíblia Sagrada está preenchida não só de juízos de valor contra a humanidade pecadora, mas também ela mesma exorta os fiéis a julgarem falsos mestres, falsos irmãos, falsa piedade, falso julgamento e falsa doutrina.[2] Não é o juízo em si que torna o judeu indesculpável, mas sim o seu ethos de juízo hipócrita, o qual Cristo proibiu os seus discipulos de praticar (Mt 7.1-5); pois, Paulo diz, tu ó judeu “(...) pratica as próprias coisas que condenas.”

Aqui está a causa da culpabilidade dos judeus. Aqui está a raiz do problema de sua ética moralista. A hipocrisia era o DNA daquela cultura judaica de julgar. É um juízo falso e deturpado. Afinal, não há nada mais hipócrita do que praticar aquilo que, pelo julgamento, se condena. O hipócrita é aquele que usa uma lupa para ver os pecados alheios, mas coloca vendas para enxergar os seus próprios. É aquele que condena em público o que pratica em secreto. É o que lança pesadíssimos fardos de exigência moral em seu próximo, mas não ousa em sua própria vida suportá-los por um segundo.

Conforme escreveu o exegeta William Hendriksen, a hipocrisia é marcada por “(...) uma avaliação demasiadamente favorável de nós mesmos e um juízo demasiadamente severo dos outros”; e, tal prática é tão odiosa e condenável que faz juz ao comentário perspicaz de João Calvino, que “(...) não são dignos de qualquer indulgência aqueles que permitem em si mesmos as mesmas coisas que se comprometem a corrigir nos outros.”

Que tragicômica é a ideia de que, aqueles que não poupam os outros de juízo – mas poupam a si mesmos da autoavaliação – queiram ser dignos de perdão! Se não se julgam, por que suplicar a Deus o seu perdão? Logo, o juízo hipócrita do judeu (bem como o nosso) é um testemunho de sua (e nossa) própria indesculpabilidade, arrogância, orgulho e indignidade perante o Santo Deus, que não tem parte com o pecado.

Concluindo, retomemos juntos agora e notemos a progressão do argumento de Paulo contra o seu intelocutor judeu da seguinte maneira: 1) você judeu, por ter a Lei, julga os gentios por quebrarem a Lei; 2) mas, você judeu, mesmo tendo a Lei, pratica a mesmas coisas que os gentios que não tem a Lei; 3) logo, você judeu, está condenando a si mesmo pela Santa e Justa Lei. Assim como os gentios, tu és passível de morte!

Portanto, Paulo mostra que ambos – gentios e judeus – estão submetidos ao pecado e são réus sem defesa e sem nenhum recurso diante do tribunal de Deus. Não há escapatória para a raça humana; não há esperança de salvação em si mesmos. Deste modo, com seus argumentos inspirados pelo Santo Espírito, Paulo fecha as portas para toda expectativa humana de salvação por méritos e obras para que, instigados pela consciência de miserabilidade e incapacidade de gerar uma justiça própria aceitável a Deus, os seres humanos sejam levados a abraçar, pela fé, uma justiça alheia [para usar um termo muito usado por Dr. M. Lutero]: Que justiça alheia é essa? Deixemos Paulo falar:

 “(...) a justiça que provém de Deus, independente da Lei, da qual testemunham a Lei e os Profetas, justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que creem. Não há distinção, pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus.” (Rm 2.21-24 NVI).

 

Querido leitor, que Deus o conduza à justiça de Cristo pela fé!

Ore agora: “Deus onipotente e Pai celestial, confesso que tenho agido com hipocrisia em meus juízos, condenado nos outros o que eu mesmo pratico; sendo cruel com meu próximo e liberal para comigo mesmo. Sou digno de morte e mereço o inferno. Suplico, porém, a Sua misericórdia infinita e me refugio na única justiça perfeita e aceitável a Ti, que não é minha, mas a de Seu Filho Jesus; e pela fé n’Ele recebo gratuitamente o Seu dulcíssimo perdão e a certeza da vida eterna. Meu Deus e Salvador, ajuda-me agora a me arrepender diariamente do juízo hipócrita, examinando a minha própria vida com humildade, tirando primeiro a trave de meu próprio olho antes de tirar o cisco dos olhos de meus irmãos, assim como o Seu Cristo nos ensinou. No Nome d’Ele eu oro. Amém.”



[1]Na ciência da Antropologia, o termo grego ethos que significa “ética” faz referência a uma espécie de síntese dos costumes de um povo. Estou aplicando o termo particularmente aos costumes morais do povo judaíco do 1º século, época em que Romanos foi redigido por Tércio.

[2]Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça.” (João 7.24); “Mas Pedro e João lhes responderam: Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus” (Atos 4.19); “Não sabeis que havemos de julgar os próprios anjos? Quanto mais as coisas desta vida!” (1 Coríntios 6.3); “Falo como a criteriosos; julgai vós mesmos o que digo.” (1 Coríntios 10.15); “Julgai entre vós mesmos: é próprio que a mulher ore a Deus sem trazer o véu?” (1 Coríntios 11.13); “Tratando-se de profetas, falem apenas dois ou três, e os outros julguem.” (1 Coríntios 14.29); “Portanto, julguei conveniente recomendar aos irmãos que me precedessem entre vós” (2 Coríntios 9.5); “Julguei, todavia, necessário mandar até vós Epafrodito” (Filipenses 2.25); “julgai todas as coisas, retende o que é bom” (1 Tessalonicenses 5.21).

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


Anuncie com Jornal Noroeste
A caption for the above image.


Veja Também


smartphone

Acesse o melhor conteúdo jornalístico da região através do seu dispositivos, tablets, celulares e televisores.