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A cosmovisão estética em Hegel (1770-1831)


Por: Fernando Razente
Data: 01/07/2024
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“Temos na arte um particular modo de manifestação do espírito; dizemos que a arte é uma das formas de manifestações porque o espírito, para se realizar, pode se revestir de múltiplas formas. O modo particular da manifestação do espírito constitui, essencialmente, em resultado.”

 

— Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Vorlesungen ueber die Aesthetik, vol. X.

 

Ao meu leitor eu peço que neste momento se lembre do último artigo desta série Cosmovisão & Educação. No último texto, escrevi sobre como o conceito de cosmovisão (weltanschauung), nas obras do filósofo alemão Schelling (1775-1854), ganhou contornos distintos e inovadores. Hoje, avançamos para o nosso próximo filósofo, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e suas considerações sobre a cosmovisão e seu lugar em nossa condição humana de seres racionais e investigativos.

Antes disso, uma rápida nota biográfica sobre o nosso pensador. Hegel nasceu em 27 de agosto de 1770. Em 1778, já estava cursando Teologia no seminário protestante de Tübingen. Schelling — que acabo de mencionar — era um de seus colegas de estudo. Em 1790, Hegel conquistou o título de magister philosophiae. Apesar de intelectualmente capacitado, declinou da vocação pastoral e trabalhou em Berna como preceptor, até 1796. Finalmente, em 1801, Hegel se tornou livre-docente na Universidade de Jena com a tese Sobre as Órbitas dos Planetas. Após quatro anos, com a recomendação de Goethe, tornou-se professor extraordinário na mesma universidade.

Mas foi em 1806, com a anexação de Jena por Napoleão, que Hegel — expectador da entrada triunfal do imperador francês na cidade alemã — passou a elaborar o seu principal livro, A Fenomenologia do Espírito (1807). Nela, o professor objetivava realizar um julgamento filosófico sobre a história do mundo e superar (ou, pelo menos esclarecer) as causas dos infortúnios e da irracionalidade política e social daqueles dias.

Na obra, Hegel compreende que a evolução das sociedades humanas são impulsionadas pela consciência de seus membros [Sittlichkeit], quer individual, quer coletiva; uma consciência manifestada na religião, na moralidade, nas leis e na cultura em geral (Cf. Hegel, Phenomenology of the Spirit. Oxford: Oxford University Press, 1977. p. 266-409). Para concluir esta rápida nota biográfica, Hegel ainda teve, nos anos seguintes, uma carreira cheia de conquistas acadêmicas, publicações e cargos importantes em universidades alemãs, até falecer de cólera em 11 de novembro de 1829.

Agora, concentrando-nos em nossa temática, reconheço que por um lado é fácil encontrar Hegel, em suas muitas obras, falando sobre cosmovisão. O difícil, sem dúvida, é resumir as suas ideias com coerência e justiça, haja vista ser Hegel o autor de muitos textos filosoficamente complexos e nem sempre objetivos. Por isso, o melhor caminho é me apoiar em uma fonte secundária de interpretação: David Naugle (1952-2021), especialista em cosmovisão cristã, autor de “Cosmovisão: a história de um conceito” (2002).

Na obra, Naugle argumenta que os escritos de Hegel sugerem que, em suas filosofia, “(...) as cosmovisões estão incorporadas tanto na consciência individual como na nacional.” (NAUGLE, 2017, p. 87-88). E lembre-se: para Hegel, o motor da história é a consciência de seus membros. Hegel afirmava que é possível o mundo de pessoas manifestar coletivamente uma cosmovisão em particular, assim como é possível um indivíduo desenvolver uma cosmovisão. Ambas — indivíduo e coletivo — podem ter uma “(...) perspectiva religiosa idiossincrática” (NAUGLE, 2017, p. 88), ou seja, um conjunto de crenças e valores religiosos e outras particularidades semelhantes que dão o temperamento e a característica da consciência geral e coletiva.

Logo, para Hegel, cosmovisão está relacionada — além de ideias políticas, filosóficas e jurídicas (legais) — com as crenças religiosas das pessoas. É importante enfatizar um aspecto distinto na visão de Hegel sobre cosmovisão, pois o pensador defende que essas crenças religiosas são marcas da função estética do ser, daquilo que apreende e comunica o belo.

É, pois, na dimensão estética do ser que Hegel enfatiza o aspecto religioso presente na consciência dos indivíduos; e ele enfatiza isso em seus discursos utilizando exatamente a palavra weltanschauung, como aquilo que trata da visão do artista. Hegel falava do desenvolvimento do fluxo do “Espírito” coletivo manifestado simultaneamente numa weltanschauung e na arte que a expressa. Ele mesmo escreve: “Esse desenvolvimento é em si mesmo espiritual e universal, visto que a sequência de concepções definidas  [Weltanschauungen], como a consciência definida, mas abrangente, da natureza, do homem e de Deus, confere a si mesma uma forma artística”.

Isso nos mostra que, na visão de Hegel, a cosmovisão do ser está fundada na consciência (individual e coletiva), marcada por concepções definidas, básicas e fundamentais sobre si mesmo e sobre a realidade; e que é tal consciência que condiciona ou determina exercício da vida prática (curioso notar que Marx e Engels, em seus manuscritos de 1845-1846, irão inverter essa ordem de Hegel, para dar forma ao materialismo histórico-dialético [Cf. A Ideologia Alemã]).

Logo, como diz Naugle,  a “(...) sequência de diferentes religiões dá origem a uma sequência de diferentes formas de arte. A arte é de fato invocada para representar ‘a essência interior do conteúdo’ de um dado período” (NAUGLE, 2017, p. 89). Concluindo, Hegel entendia que a “(...) vocação da arte é exibir o espírito da época. As formas de ver o mundo são tecidas na arte e reveladas por ela” (NAUGLE, 2017, p. 90). Isso, sem dúvida, é verdadeiro.

Infelizmente, nos acostumamos a ver obras de arte sem nos perguntar o que fez possível tal arte daquela forma e não de outra, o que condicionou a escolha do tema e não de outro, de tais cores e perspectivas e não de outras, do espaço e do propósito. A resposta: a cosmovisão, ou  em termos hegelianos, as concepções, a consciência, a weltanschauungen religiosa na consciência.

A arte — em suas várias dimensões, do belo ou servis —, portanto, é reveladora e a educação não pode ignorar isso, seja um professor ensinando sobre arte ou os próprios alunos produzindo arte. O educador e o aluno devem estar cientes de que a arte comunica crenças, ideias e valores religiosos. Ela expressa cosmovisões com um poder e um impacto estético sem igual, e nos revela sobre as mais profundas crenças e compromissos dos artistas, compromissos, diga-se mais uma vez, de natureza religiosa (NAUGLE, 2014).

Como escreveu Hans R. Rookmaaker (1922-1977) — antigo professor do departamento de História da Arte na Universidade Livre de Amsterdã — , hoje “(...) se estudamos os grandes artistas e seus feitos, não conseguiremos identificar qual era a força propulsora de sua vida, no que eles criam, o que defendiam. Essas coisas, vistas como subjetivas, são deixadas de fora. Temos a impressão de que esses grandes nomes do passado eram capazes de produzir suas obras de arte a partir de sua própria genialidade e ideias, e que a religião tinha pouco a ver com isso. Precisamos nos atentar para esse fato para não cairmos nessa perversão inerente, pois ela é fundamentalmente uma inverdade. (...) Eles [artistas] operam a partir de uma perspectiva básica da vida e da realidade. Essa perspectiva geralmente se configura como uma religião irreligiosa.” (ROOKMAAKER, 2010, pp. 16-17). A arte expõe os pressupostos religiosos fundacionais de uma sociedade ou de um indivíduo que impactam profundamente o coletivo que a consome e a contempla. Nisso, Hegel acertou — apesar de seus muitos erros.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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