A “visão de vida” de Søren Kierkegaard (1813-1855)
Por Prof. Fernando Razente[1]
“A subjetividade é a verdade. A subjetividade é a realidade.”
— Kierkegaard, Post-Scriptum Final Não Científico às Migalhas Filosóficas, p. 180, Martins Fontes, 2001.
Dando continuidade na nossa série sobre Cosmovisão & Educação aqui na coluna Ensaios Críticos, chegamos na cosmovisão do filósofo dinamarquês do século XIX Søren Kierkegaard (1813-1855), conhecido como o “Sócrates de Copenhagen”.
Kierkegaard é considerado pelos historiadores da filosofia como o grande pai do existencialismo moderno. Essa corrente filosófica defendia que o modo de ser do homem só pode ser compreendido de maneira radicalmente subjetiva e histórica – e não de maneira universal e essencial –, sobretudo a partir das experiências humanas com a angústia, o desespero e o paradoxo.
Com suas obras de perspectiva existencialista/subjetivista, Kierkegaard acabou por influenciar uma série de pensadores importantes na filosofia e teologia existencial do Ocidente como Sartre, Camus, Heidegger, Barth, entre outros.
Aqui, o que nos interessa é rastrear o conceito de cosmovisão na filosofia existencialista de Kierkegaard e esclarecer o seu sentido. O caminho para isso, porém, deve começar com a compreensão do que Kierkegaard entendia como realidade existencial, ou modos de existência.
De acordo com a filosofia existencial de Søren Kierkegaard, a experiência da vida humana é repartida em três estágios e/ou fases: 1) o estético, 2) o ético e 3) o religioso. Há uma gradação em termos de aprofundamento subjetivo entre os três estágios.
Todo indivíduo inicia sua jornada existencial na fase do estético, da experiência sensitiva e corpórea com o mundo, que se expressa em uma vida vivida para o instante, para aproveitar o momento, com apego aos aspectos materiais do mundo, sem projetos para o futuro. Kierkegaard usa como símbolos desse estágio existencial as figuras de Don Juan, Fausto e o Judeu errante da parábola de Jesus (Lc 15.11-32).
Em seguida, o sujeito evolui para o estágio ético, onde o seu objetivo passa a ser a busca do bem moral e evitar o mal; o sujeito busca seguir seus deveres, tenta espelhar-se no caráter familiar, além de planejar uma estabilidade e uma continuidade de existência. O importante é entender que essas duas experiências – estético e ético – defende Kierkegaard, ocorrem em um plano radicalmente imanente da vida, sem nenhuma conexão com a espiritualidade.
Porém, é no terceiro estágio, o religioso, que o encontro com o transcendente acontece – e onde, para Kierkegaard, a cosmovisão nasce no sujeito. Antes de irmos diretamente a esse nascimento da cosmovisão, consideremos o que é o estágio religioso. O instrumento da experiência religiosa subjetiva com o transcendente – com o Deus cristão – segundo Kierkegaard, é a fé, e esta compreendida no seu sentido místico e não racional. A fé para Kierkegaard é um salto de confiança “no escuro”.
Em sua obra Temor e Tremor, publicada em 16 de outubro de 1843, Kierkegaard ilustra essa posição a partir da figura de Abraão, o pai da fé. Para contemplarmos o arquétipo do homem na fase do salto, diz Kierkegaard, temos que ver a história de fé de Abraão quando foi chamado por Deus para, em obediência, sacrificar o seu único filho, chamado Isaque. Diante de tal ordem: “Abraão cala-se... porque não pode falar; nesta impossibilidade residem a tribulação e a angústia. Porque, se não me posso fazer compreender, não falo, mesmo se discurso noite e dia sem interrupção. Tal é o caso de Abraão; pode dizer tudo, exceto uma coisa e quando não pode dizê-la de maneira a fazer-se entender, não fala.”[2]
Para Kierkegaard, a experiência de Abraão demonstra o fim do processo onde o indivíduo, sem poder encontrar sentido nos prazeres, nem coerência na vida ética, escapa da realidade se refugiando em um local totalmente transcendental, encontrando-se com o Absoluto. Esse passo Kierkegaard chama de “fé”, um salto em algo desconhecido, inefável, mas confiável.
É importante lembrar que esse estágio religioso, para Kierkegaard, não pode ser alcançado por nenhuma justificação racional ou científica, mas é um momento do indivíduo acreditando naquilo, embora aquilo não possa ser descrito de modo racional, lógico ou propositivo. É o subjetivismo em sua radicalidade existencial.
Voltando agora ao conceito de cosmovisão, segundo o especialista americano David Naugle (1952-2021), é exatamente neste terceiro estágio que para o filósofo dinamarquês o ser humano passa a adquirir uma “visão de vida”.
Kierkegaard, diferente dos teóricos e filósofos anteriores preferia o uso do termo mais existencial “livsanskuelse”, cuja tradução da língua dinamarquesa é “visão de vida”, do que propriamente o “weltanschauung”, do alemão “visão de mundo”. Isso porque Kierkegaard – como existencialista – entendia que essa visão que permite-nos interpretar a realidade é resultado das experiências subjetivas da vida, daí “visão de vida”.
É na experiência religiosa e subjetiva que o indivíduo passa pela conversão à Cristo através da fé mística que, por sua vez, leva a uma formação de uma “visão de vida”:
“Se agora perguntamos como uma visão de vida surge, respondemos que para aquele que não permite que a sua vida seja malograda, mas tenta na medida do possível equilibrar os eventos individuais da vida – que para tal pessoa deve necessariamente chegar um momento de iluminação incomum sobre a vida, sem necessidade de a pessoa em qualquer sentido ter compreendido todos os possíveis pormenores para o que entendimentos subsequente daquilo que até então ela tem [venha a ter] a chave: Ora, deve chegar o momento em que… a vida é entendida de trás para frente através da Ideia.”[3]
Essa “visão de vida”, portanto, é resultado de uma invasão do kairós no cronos da experiência do sujeito; e tal visão fornece uma compreensão mais clara a respeito da própria vida do sujeito a partir de um olhar retrospectivo. É como se depois dessa experiência, a própria série de contingências passadas do sujeito recebesse um novo significado à luz dessa “visão de vida” redimida.
Ou seja, diferente de uma cosmovisão filosófica e analítica, onde o que impera é um sistema objetivo de pensamento sobre a realidade a despeito das contingências históricas, a cosmovisão na perspectiva de Kierkegaard, ou melhor, a livsanskuelse de Kierkeegard, é uma forma de interpretação da realidade baseada no encontro místico, porém existencial com o transcendente, de modo que é apropriado dizer que o sujeito vive dentro de sua cosmovisão, e não simplesmente a possui.
É importante retomar que para Kierkegaard as pessoas não nasciam com uma “visão de vida”, mas só chegavam a ela no transcurso de suas existências, no momento específico do encontro transformador e existencial com o Cristo místico. Há sérios problemas nesse conceito existencial de cosmovisão, sobretudo em sua potencialidade em separar de maneira radical a experiência da conversão e formação da cosmovisão de uma análise racional e lógica, como se tais realidades fossem antagônicas (conversão/visão de vida redimida ≠ razão/lógica).
Esse problema já foi sinalizado pelo teólogo presbiteriano Francis Schaeffer (1912-1984), que mapeou as implicações dessa distinção “conversão ≠ razão” em seu clássico A Morte da Razão (1968), onde nos diz que com a filosofia de “(...) Kierkegaard, o que temos é algo assim: o otimismo deve ser não racional/ toda racionalidade = pessimismo. Desapareceu a esperança de um elo entre as duas esferas [imanente e transcendente].”[4]
Em outras palavras, se a formação de uma cosmovisão que confere sentido para a vida só vem a partir de uma experiência mística e irracional de fé, a consideração das próprias experiências da vida por meio naturais, lógicos e sistemáticos é completamente inútil e desnecessária. O próprio Kierkegaard dizia que a existência não poderia ser sistematizada.
Por outro lado, devemos dizer que há méritos em certas afirmações de Kierkegaard, principalmente quando o filósofo observa que é no decurso das nossas experiências históricas – e não de forma absolutamente prévia e essencial – que vamos formando (alguns) aspectos do “(...) conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) (...) que sustentamos (...) sobre a constituição básica de nosso mundo”[5], isto é, a cosmovisão.
[1]É professor de Ciência e Filosofia da Religião no Centro de Pós-graduação São Camilo (SP) e professor de Cultura Religiosa, Filosofia, História e Sociologia do Ensino Médio do Sagrado - Rede de Educação, Unidade Colégio Coração de Jesus. É diácono ordenado pela Igreja Presbiteriana do Brasil em Nova Esperança. É casado com Renata Minelli, e pai da Edith e do Teófilo.
[2]KIERKEGAARD, Soren. Temor e Tremor. Os Pensadores, 1974, p. 321.
[3]Søren Kierkegaard, citado em Naugle, Worldview, pp. 76-77.
[4]SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão. São Paulo: ABU Editora; Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2014, p. 53.
[5]SIRE, James W. Dando nome ao Elefante: cosmovisão como um conceito. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. p. 29.