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A circuncisão e seu valor


Por: Fernando Razente
Data: 09/12/2024
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Romanos 2.25 (ARA): Porque a circuncisão tem valor se praticares a lei; se és, porém, transgressor da lei, a tua circuncisão já se tornou incircuncisão”

No texto anterior desta série de exposições, vimos Paulo declarar que o nome de Deus é blasfemado entre os gentios por causa da hipocrisia religiosa daqueles que se diziam ser os verdadeiros servos do Senhor, isto é, os judeus (Cf. Rm 2.23-24).

Segundo o apóstolo Paulo, esses judeus – apesar de viverem impiamente – se apoiavam na circuncisão “(...) como suficiente seguro contra a condenação”[1], argumenta Geoffrey B. Wilson. Isso significa que mesmo vivendo de modo hipócrita e ímpio, os judeus acreditavam que pelo fato de terem sido uma vez circuncidados, seriam necessariamente salvos da ira de Deus, enquanto os gentios (incircuncisos) seriam condenados.

Agora no versículo 25, Paulo começa a desmontar as estruturas teológicas dessa falsa compreensão da natureza e do valor da circuncisão. O objetivo de Paulo é mostrar novamente que, com base na observância da lei, tanto gentios como judeus estão debaixo de condenação. Antes de irmos diretamente para a exposição do texto, façamos algumas considerações sobre a circuncisão na época de Paulo.

Não é exagero dizer que a circuncisão – na mentalidade judaica – havia se tornado o critério mais fundamental da redenção dos pecadores. O comentarista John Stott explica que os judeus tinham “(...) uma confiança quase supersticiosa no poder salvador de sua circuncisão”[2], e que haviam na época epigramas rabínicos que diziam que “o homem circuncidado não vai para o inferno” e “A circuncisão livrará Israel do inferno”[3].

Mas o que era a circuncisão? O termo para circuncisão usado por Paulo é Περιτομ?/Peritome, que significa “cortar ao redor”. Trata-se de um ritual, realizado no oitavo dia após o nascimento do menino judeu e que remonta à aliança estabelecida entre Deus e o patriarca Abraão, descrita no livro de Gênesis (Gn 17.10-14), onde uma cirurgia era realizada para retirar o prepúcio nos homens, que é a pele que recobre a glande do pênis. Daí a ideia de “cortar ao redor”.

Conhecida em hebraico como brit milá, a circuncisão foi e ainda é uma prática central na tradição judaica, marcando a entrada do menino judeu ou do homem adulto no pacto sagrado entre o povo judeu e Deus. Segundo Stott, “(...) a circuncisão era um sinal dado por Deus para selar sua aliança com eles [judeus].”[4] Essa prática simbolizava o pertencimento daquela criança ou adulto à aliança com Deus. Também atesta Herman Bavinck, que a circuncisão “(...) era um sinal e selo do perdão dos pecados e da santificação na aliança da graça.”[5]

Agora, vejamos o que Paulo diz a respeito do problema envolvendo o selo do pacto. O autor sagrado, ciente da compreensão equivocada da função e do poder da circuncisão por parte dos judeus, diz, em primeiro lugar, que “(...) a circuncisão tem valor se praticares a lei”. Esse sinal externo deveria refletir o compromisso sincero e de coração do crente com Deus e sua lei. O valor da circuncisão, portanto, repousava naquilo que ela representava: uma vida consagrada a Deus.

Porém – diz Paulo ao judeu circuncidado – se és “(...) transgressor da lei, a tua circuncisão já se tornou incircuncisão”. Ou seja, se não há vida consagrada a Deus através da prática piedosa da lei, qual valor tem aquilo que simboliza o que não existe? Paulo demonstra aqui que ritos externos, sem materialidade, são inúteis e sem valor diante de Deus. Circuncisão material sem obediência à lei equivale à incircuncisão espiritual.

A consequência disso é que, mais uma vez, os judeus circuncidados estão tão sujeitos ao julgamento de Deus quanto os gentios incircuncisos. Afinal, argumenta Stott, “(...) o sinal definitivo, a evidência genuína, de pertencer à aliança de Deus não é nem a circuncisão nem o fato de possuir a lei, mas a obediência”[6].

Paulo, segundo comentaristas, retira os judeus hipócritas de seu último esconderijo e os despoja de onde geralmente se ocultavam: sua ilusória confiança na posse da circuncisão.[7] Conforme Calvino, “(...) Paulo, depois de não ter deixado nada aos judeus, a não ser esse pobre subterfúgio de ser justificado pela circuncisão, agora também tira deles até mesmo essa pretensão vazia.”[8]

Em suma, o apóstolo mostra aqui que a justa condenação dos pecadores resulta do fato de não responderem obedientemente à revelação, seja ela de qual tipo for (na natureza e na consciência ou nas Escrituras). Enquanto os gentios transgrediram a revelação natural, os judeus transgrediram a lei mosaica em particular, esvaziando a circuncisão de seu significado real.

Por fim, haja vista que “No Novo Testamento, o batismo tem seu fundamento na circuncisão do Antigo Testamento”[9], podemos aplicar o mesmo princípio e exortação de Paulo aos cristãos hoje, quando nos referimos ao sacramento do batismo.

Hoje, muitos cristãos recorrem à sua experiência do batismo quando são indagados sobre sua conversão. “Você é um cristão? Você se converteu a Cristo? Você foi salvo?” e a resposta é: “Eu fui batizado na igreja”. Porém, devemos nos lembrar que o batismo por si mesmo – assim como a circuncisão – não traz salvação; ele foi instituído para simbolizar um coração purificado e consagrado ao Senhor.

No entanto, de que vale o nosso batismo diante do justo Deus, se a substância que ele deveria simbolizar não existe? Se somos batizados, mas vivemos como se não fôssemos, somos, na verdade, pagãos. O símbolo externo sem a realidade interna e/ou prática nada é, e aqueles que se apegam a ritos externos sem a substância se tornam vazios e ocos, embora externamente religiosos. Parafraseando Paulo, o batismo tem valor se você pratica a lei e vive como um servo de Deus, lavado e regenerado pelo Espírito Santo, mas se você não vive como um servo de Deus, seu batismo se tornou nulo e vazio, como se você nunca tivesse sido batizado.

Que possamos buscar as experiências internas da graça de Deus tanto quanto somos inclinados a valorizar os ritos externos e sacramentais. Amém.



[1] WILSON, Geoffrey B. Romanos. São Paulo, SP: PES, 2007, p. 51.

[2] STOTT, John. Romanos. São Paulo: ABU Editora, 2007, p. 104.

[3] Citado por Cranfield, vol. I, p. 172, rodapé 1.

[4] STOTT, John. Romanos. São Paulo: ABU Editora, 2007, p. 104.

[5] BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada - Espírito Santo, Igreja e nova criação. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 502.

[6] Ibidem, p. 105.

[7] MURRAY, John. Romanos, p. 114.

[8] CALVINO, João. Romanos. Disponível em: https://biblehub.com/commentaries/calvin/romans/2.htm

[9] BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada - Espírito Santo, Igreja e nova criação. São Paulo: Cultura Cristã, 2012. p. 502

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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