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José Amarante, entre a jardinagem e a poesia


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 02/05/2023
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Em janeiro de 2023 tive a oportunidade de conhecer Natal, Rio Grande do Norte, e uma das grandes experiências naquele estado foi a de conhecer a Casa do Cordel e de conversar com dois brilhantes cordelistas, Chico de Iaiá e Abaeté do Cordel. Dessa viagem dois textos foram escritos, que ocuparam páginas inteiras do Jornal Noroeste. Uma das premissas de Abaeté do Cordel é a de que todo ser humano é poeta, e que a vida é a própria poesia.

Ao chegar à minha cidade, Maringá, Paraná, compartilhei algumas histórias com um amigo, irmão José Amarante, por saber que ele é nordestino, de Pernambuco, e que gosta de poesia. Para a minha surpresa, ele disse que no passado foi repentista e que hoje, de vez em quando, também faz poesias. Pedi para ele falar um de seus poemas e a resposta veio no ato. Diante disso, pedi para ele me contar mais da sua história.

José Amarante

Irmão Amarante nasceu em Pernambuco, na cidade de Tupanatinga, em 03/06/1969, e na mocidade morou na Bahia, em São Paulo, até vir para o Paraná. Ele chegou a viver, em parte, em razão de sua poesia, recebendo trocados para criar repentes na capital paulista. A poesia, como ele diz, lhe saía naturalmente, e hoje só não lhe sai tanto porque perdeu o hábito. Ele afirma que é uma alegria quando encontra um bom repentista, pois, a partir das palavras do companheiro, a criação torna-se fácil, espontânea.

Eu, que escrevo há 22 anos, sei o quão difícil é escrever, e imaginar coisas de modo espontâneo é só ocasionalmente. Mas, no caso do meu amigo, e de outros cordelistas que conheci, por mais que haja todo cuidado com a língua, a espontaneidade é a regra.

Segundo o meu amigo, quando ele resolve criar uma poesia, as palavras aparecem em forma de um mural. Fiquei admirado e pedi para que ele me explicasse melhor. Ele me disse que quando lhe vem o desejo de criar uma poesia, ele olha para a natureza, pois ele é jardineiro profissional, e, de uma árvore, de um campo, de um passarinho, tudo isso ele chama de mural, a poesia lhe vem naturalmente, tão naturalmente quanto o canto de um canário da terra.

Eu já tive a oportunidade de ver grandes murais, como os de Kobra, em São Paulo, e o da cidade de Dresden, na Alemanha. Para o de Dresden, eu próprio escrevi um poema, presente no meu livro “Versos de Varsóvia”, e foi interessante como que o poema nasceu com naturalidade. A ideia é a de que uma arte chama por outra arte, tal qual o meu amigo me disse. Algo semelhante se deu quando fui à Casa do Cordel, quando voltei para o hotel, escrevi dois longos textos em uma só noite.

Praça cuidada por José Amarante, em um condomínio de Maringá

Há princípios pedagógicos que não são mero populismo, como o de valorizar os saberes trazidos de casa. Isso não significa que o professor pode deixar de preparar aulas, pelo contrário, as suas aulas podem ficar incrivelmente mais ricas e participativas e a ciência se voltar aos fatos do cotidiano, em uma complexa relação de trocas. Eu já tive alunos cujos pais eram artistas, e tive a satisfação de trazer a sua arte, no caso, esculturas, para o meu trabalho, e lhe organizei uma exposição. A possibilidade de trocas em matéria de conhecimento é infinita.

Por meio de uma simples conversa pude ganhar em conhecimento e sentir que a poesia não é algo abstrato, isolada em poemas parnasianos, mas á manifesta em todos os lugares, formais e informais. Para que o leitor sinta o que eu senti, compartilharei alguns poemas do meu amigo.

Antes, porém, de publicar as poesias, preciso tecer duas considerações: 1ª Irmão Amarante e eu nos conhecemos em um dia qualquer, há dois anos, por volta das 21 horas, pois é nesse horário que ele sai para passear com a sua cachorrinha, Mary Jane. Ele, que mora a 200 metros da minha casa, me reconheceu da igreja, me saudou e se pôs a conversar, e assim ocorre desde então. 2ª Ele nunca publicou nada, pois, por mais que possua um vocabulário impressionante e uma fala bem articulada, se considera alguém de “pouco estudo”, um “não conhecedor da gramática”, alguém que não sabe “colocar ponto, vírgula, essas coisas, exclamação e outros mais”, segundo as suas palavras.

Eu saí para passear

Já tinha findado o dia

Encontrei um grande amigo

Parece que ele sabia

Que na resta da minha sombra

Acompanhava a poesia

 

Contando eu também dizia

Que um tempo eu fui poeta

Por grande necessidade

Eu virei quase um profeta

Lá nas ruas de São Paulo

Andando de bicicleta

 

O sangue corre na veia

A poesia na mente

Ela transmite alegria

E deixa a gente contente

E de acordo a doença

Cura até os doentes

 

Agora eu viro um poeta

E vou ter que decidir

Vou deixar a jardinagem

E a poesia seguir

Pois achei um professor

Na linguagem deu valor

E o texto vai redigir

Para passar para o leitor

Ele é o produtor

De tudo o que vai surgir

 

Eu e Mary Jane juntos

Um na cadeira

Outro no chão

A língua quase enrolou

Saindo fora do padrão

Essa cachorrinha linda

Mora no meu coração

 

Estou aqui carpindo mato

E levantando a poeira

Ouvindo uma algazarra

Da cigarra pantaneira

Passarinho me traz notícia

Do irmão Noel Moreira

 

Ó meu Deus, nesse momento

Meu pensamento é no céu

Pedindo a misericórdia

Saúde ao irmão Noel

Para juntos nós trabalharmos

Na obra que vem do céu

 

Estou caçando um jeitinho aqui

Mas não estou encontrando

É sinal que estou cansado

E a mente está falhando

Eu vou tomar um banho

Que assim fico descansando

E à noite se Deus quiser

Com os irmãos estou congregando

 

Guarde bem esses versos

Que foi um dos preferidos

Parece uma criança

A voz do recém-nascido

E vou admirar

Pois começa a falar

Com o coração transcorrido

 

Vi uma flor na floresta

Estava acenando pra mim

Eu andei o dia inteiro, confesso

Não achei ruim

Quando eu cheguei perto dela

Era a flor do amendoim

 

Estou gravando o meu amigo

Bueno Manuel Galvão

Eu em cima de uma pedra

E ele sentado no chão

É que eu fui mais fortinho

E fiz a vez e passarinho

Voando igual gavião

 

Ele apertou a mão

Pra na árvore se escorar

Estava pedindo uma rede

Mas não pôde se deitar

É que esqueceu a corda

Para na árvore amarrar

 

Olha, aqui é tão gostoso

Que vale a pena falar

É plantio de soja pra todo lado

E o eucalipto pra intercalar

E nós na sombra deitados

E esses versos falados

Eu pude já dedicar

 

Algo mais pra espiar

E é esse vento tão belo

Do lado a soja está verde

Do outro está amarelo

Parece até a bandeira

Hasteada no castelo

 

Viver assim pois eu quero

Viver sem preocupação

Aqui no meio do deserto

Eu pareço capitão

Do lado do Elias Bueno

Já foi menino pequeno

E hoje é um bom cidadão



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Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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