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Travessias


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 03/03/2022
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“A vida não é útil”’, de Ailton Krenak[1]

 



Este livro de Ailton Krenak, a exemplo de “Ideias para adiar o fim do mundo”, segue no estilo exemplar de dizer muito por meio de poucas palavras. É possível ler “A vida não é útil” em poucas horas, em uma só sentada, o que de modo algum significa superficialidade, mas uma capacidade incrível de ser simples (ainda que na complexidade).

            “A vida não é útil” foi escrito no contexto pandêmico, na verdade, nos primeiros dias após o início da pandemia, no ano de 2020, porém, os seus diagnósticos e conclusões são atemporais. Krenak afirma que estamos vivendo uma crise e que é preciso mudar, do contrário, a crise será uma catástrofe para os seres humanos. Sobre crises, afirmou Hannah Arendt em “Entre o passado e o futuro”: “Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos.” (ARENDT, 2009, p. 223). Contudo, caso o ser humano não mude, antes, continue “pisando duro” sobre a Terra, o líder indígena é categórico:

           

O modo de vida ocidental formatou o mundo como uma mercadoria e replica isso de maneira tão naturalizada que uma criança que cresce dentro dessa lógica vive isso como se fosse uma experiência total. As informações que ela recebe de como se constituir como pessoa e atuar na sociedade já seguem um roteiro predefinido: vai ser engenheira, arquiteta, médica, um sujeito habilitado para operar no mundo, para fazer guerra; tudo já está configurado. Nesse mundo pronto e triste eu não tenho nenhum interesse, por mim ele já podia ter acabado há muito tempo, não faço questão de adiar seu fim. (KRENA, 2020, p. 100-101).

 

            É fato que muita gente foi pega de surpresa com a pandemia de covid-19. No entanto, essa surpresa é relativa, pois vários organismos nacionais e internacionais já alertavam para que o ser humano mudasse de comportamento, pois, do contrário, haveriam problemas. Além de relatórios científicos, também havia obras literárias que indicavam isso, como a profética “A peste”, de Albert Camus, que é citada por Krenak.

            Portanto, sinais e mais sinais de que a direção tomada pelo ser humano não é boa foram dados. Por que ele não muda? Por que a “festa” não pode parar? Por que o progresso não pode parar? Por que todo o mundo precisa se civilizar? Eis perguntas que têm respostas óbvias, mas, vale a pena dizer, o óbvio não é algo tão óbvio assim. A festa tem que parar – mas não para. O progresso tem que ser diferente – mas não é. A civilização está cheia de mal-estar (como dizia Freud) – mas segue a sua marcha cega.

            Qualquer pessoa (ao menos no Brasil – e em vários outros países) pode ver rios próximos de suas casas repletos de plástico; qualquer pessoa pode ver canteiros imundos; qualquer pessoa pode ver as ruas poluídas. Se essas imagens não são sinais de que as coisas vão mal, o que mais pode ser? Ailton Krenak nos dá mais um sinal de alerta: “Nós podemos habitar este planeta, mas deverá ser de outro jeito.” (KRENAK, 2020, p. 44). Não dá para habitar, por exemplo, destruindo o rio Doce ou qualquer outro rio.

            Krenak é um humanista radical. Na verdade, não sei se seria correto o uso do termo humanista, mas, que seja assim por enquanto (estou aberto a mudar o termo). A questão é que seus ensinamentos são repletos de provocações éticas, e é por isso que o chamei de humanista. De alguma maneira, suas provocações fazem lembrar as de Albert Schweitzer, que criticou os rumos da civilização ocidental, e as de Erich Fromm, crítico do modo ter. Krenak, Schweitzer e Fromm são críticos da sociedade industrial e é por isso que os coloquei dentro de um mesmo contexto.

            O líder indígena declara literalmente: “Não se come dinheiro.” E ele também declara: “Temos que parar de nos desenvolver e começar a nos envolver.” (KRENAK, 2020, p. 24). É preciso contestar certos dogmas, tais como: “dinheiro é igual a felicidade”, “progresso é igual a prosperidade” e “bênção é igual a dinheiro”. Essas ideias são mentirosas e quem as prega mente. É preciso “nos envolver” com a natureza, com o modo ser (como dizia Fromm), com a transcendência, é preciso parar de só pensar no aqui agora e na vida como consumismo e prazer ilimitado. Utopias? Sonhos? É preciso “sonhos para adiar o fim do mundo”.

            “A vida não é útil”, conforme dito, foi escrito no contexto pandêmico. Esse período deixou ainda mais claro para o escritor que a vida não é útil e que o ser humano, se não quiser ser uma máquina, não pode pensar só sob o viés da economia e do trabalho. Esse pensamento é tão importante, poderoso e perigoso, pois vai de encontro a ideologias medíocres, como a de que “a economia não pode parar”, esta tão escancarada e dita à exaustão por Jair Bolsonaro. É contra o presidente da República que Ailton Krenak falará:

 

O presidente da República disse outro dia que brasileiros mergulham no esgoto e não acontece nada. O que vemos nesse homem é o exercício da necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está dominando o mundo. (KRENAK, 2020, p. 80).

 

Vemos algumas pessoas defenderem a manutenção da atividade econômica, dizendo que “alguns vão morrer” e é inevitável. Esse tipo de abordagem afeta as pessoas que amam os idosos, que são avós, pais, filhos, irmãos. É uma declaração insensata, não tem sentido que alguém em sã consciência faça uma comunicação pública dizendo “alguns vão morrer”. É uma banalização da vida, mas também é uma banalização do poder da palavra. Pois alguém que fala isso está pronunciando uma condenação, tanto de alguém em idade avançada, como de seus filhos, netos e de todas as pessoas que têm afeto uns com os outros. Imagine se vou ficar em paz pensando que minha mãe ou meu pai podem ser descartados. Eles são o sentido de eu estar vivo. Se eles podem ser descartados, eu também posso. (KRENAK, 2020, p. 86).

 

            A que ponto o ser humano pode ser comparado por uma lógica perversa, que trata determinados grupos como descartáveis: como seres do esgoto. Que terrível a lógica de tornar a vida útil, pois ela cria seres do esgoto e seres do palácio. É preciso acabar com a festa e o culto ao progresso, por mais doloroso que seja. Utopia? Sonho? Krenak sabe de sua limitação enquanto indivíduo e sabe que suas ideias são pequenas e até que “uma andorinha só não produz verão”. Mas, nem por isso, nem diante de tragédias, é possível lavar as mãos, até porque é preciso lavá-las em uma água limpa, o que, até isso (ou, a começar por isso) tem sido difícil de encontrar.

  

Ailton Krenak. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Albert Camus. A Peste. Rio de Janeiro: Record, 2020.

Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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