Sófocles. “Édipo rei”
Sei que vós sofreis; mas, seja qual for vosso sofrimento,
não há um de vós que sofra tanto quanto eu.
(SÓFOCLES, 2010, p. 8).
Sófocles, tragediógrafo grego, escreveu a famosa trilogia tebana, composta por “Édipo rei”, “Édipo em Colono” e “Antígona”. Édipo, de início destinado ao trono de Tebas, por causa de uma profecia terrível, que indicava que ele mataria o pai, Laio, e se casaria com a mãe, Jocasta, é abandonado por um pastor, a mando de seu pai, para perecer. Todavia, quis o destino que ele não morresse, antes, que fosse adotado pelo rei de Corinto e, depois, com medo de matar seu pai adotivo (que ele pensava ser biológico), foge e acaba por duelar contra Laio, matando-o. O desfecho dessa obscura e trágica história é conhecido: Édipo volta a Tebas e se casa com Jocasta.
Um dos temas centrais da história é o poder do destino, como algo cego a guiar os homens. Liberdade? Eis algo de pouco valor. Consciência? Eis algo fraco diante da vida, que é capaz de tornar o ser humano “joguete do destino” (SÓFOCLES, 2010, p. 68). Outro tema fundamental a “Édipo rei” é a ironia. O filho de Laio tornou-se conhecido pela grande sabedoria que detinha, pela capacidade de decifrar famosos enigmas e por ser um excelente líder. Essas qualidades são por várias vezes reconhecidas por seus interlocutores. Contudo, mesmo dotado de tanta sabedoria, ele era um ignorante no que havia de fundamental: a sua história. Dominou o mundo, mas não dominou a si. O destino não aprecia dominações humanas. Para o destino, a sabedoria é facilmente convertida em loucura. Que se observe as palavras abaixo de Édipo:
Vejo-me nesta hora de posse do poder que ele teve antes de mim, de posse de seu leito, da mulher que ele já havia tornado mãe; filhos comuns seriam hoje mais um laço a nos ligar, se a infelicidade não houvesse golpeado sua raça; mas foi preciso que a sorte viesse se abater sobre sua cabeça! Sendo assim, eu é que lutarei por ele, como se ele tivesse sido meu pai. (SÓFOCLES, 2010, p. 20-21).
Que sobrevenham todas as desgraças que quiserem! Mas minha origem, por mais humilde que seja, quero conhecê-la. Em seu orgulho de mulher, ela certamente se envergonha de minha obscuridade: mas eu me considero filho da Fortuna, Fortuna a Generosa, e não sinto vergonha alguma. Fortuna é que foi minha mãe, e os anos que acompanharam minha vida fizeram-me sucessivamente pequeno e grande. Eis aí minha origem, nada pode mudá-la: por que eu renunciaria saber de quem nasci? (SÓFOCLES, 2010, p. 76).
“Édipo rei” tem vários motivos para ser um clássico, talvez o maior deles seja porque a dor e o sofrimento sejam atemporais. A ideia de tragédia é esta: revelar o sofrimento em sua máxima dureza, de modo que o encerramento de uma tragédia é o ápice do sofrimento, vide “Prometeu”, de Ésquilo, e vide também a continuidade da trilogia tebana. Um outro aspecto importante desse clássico é que é perigosa a inveja. Invejar Édipo era normal, visto a sua sabedoria e riqueza, porém, sua história mostrou-se infame, e quem há de invejar o infame?
A obra de Sófocles também inspirou a criação e o debate intelectual ao longo da história. É famoso, por exemplo, o “Complexo de Édipo”, termo cunhado por Freud para explicar o complexo das paixões infantis. Um dos pontos fundamentais, para Freud, na referida tragédia, é a fala de Jocasta ao filho: “O que teria a temer um mortal, joguete do destino, que nada pode prever com certeza? Viver ao acaso, como se pode, é de longe ainda o melhor. Não temas o himeneu com uma mãe: muitos mortais já partilharam em sonho o leito materno. Quem dá menos importância a tais coisas é também quem mais facilmente suporta a vida.” (Sófocles, 2010, p. 68). Sim, Freud foi criticado por problematizar a sexualidade infantil, mas, sob a égide do espírito trágico, o pai da psicanálise não se furtou aos debates mais duros que a vida impõe. A vida impõe certos debates e evitá-los é perder o combate sem sequer tê-lo travado.
É interessante tomar contato com uma obra de mais de dois mil anos e a sentir como atual. É curioso como um brasileiro ou um africano podem se sentir um só lendo as páginas de Sófocles. E por que isso? Por causa da temática universal da tragédia. Com isso é possível dizer que a repartição do mundo em nações é apenas no sentido de organização jurídica e política, mas jamais no plano das ideias, porque, apesar de todas as diferenças, as ideias nos unem (ou deveriam nos unir). Essa igualdade, porém, não é um sentimento de homogeneização para dominação, mas porque certos princípios, certos sentimentos, perpassam todos aqueles que são chamados de “seres humanos”, e porque todos se alimentam do que vem da terra.
Neste momento é preciso estender a discussão, para me valer de Ailton Krenak, em “Ideias para adiar o fim do mundo”. A maior tragédia, a tragédia das tragédias, é quando o ser humano, se alienando da vida, da terra, acaba por destruir a natureza. O consumismo é uma tragédia, ainda que não seja (ainda) visto enquanto tal.
Por fim, cabe encerrar este texto indicando o que vem depois do rei Édipo saber a integralidade de sua história. Ele perde o reinado, pois seria impossível mantê-lo, até em razão dos dizeres do oráculo de Delfos, de que Tebas precisava se livrar do assassino de Laio para voltar à prosperidade; e porque seria intolerável para o próprio Édipo conviver em Tebas sabendo de sua sina. Então o rei vai para Colono, atrás de consolo para os seus últimos dias. E ele encontrará esse consolo? Essa será a história de “Édipo em Colono”.
À parte as considerações acima, que versaram sobre o teor da tragédia e sobre a sua recepção, quero trazer uma curiosidade. O oráculo de Delfos, tão celebrado em “Édipo rei” e na antiguidade grega como um todo, encontra-se atualmente em ruínas. E por ruínas estou a dizer que em estado de abandono e até de vandalismo. Quando lá estive, em janeiro de 2016, dava dó de ver um lugar que a tantos inspirou a tão poucos atualmente estar inspirando. Acaso a “voz de deus” se calou? Para onde foram as pitonisas? Ao ver as ruínas do oráculo pude ver uma nova espécie de tragédia.
Olhai, habitantes de Tebas, minha pátria. Vede Édipo, esse decifrador de enigmas famosos, que se tornou o primeiro dos humanos. Ninguém em sua cidade podia contemplar seu destino sem inveja. Hoje, em que terrível mar de miséria ele se precipitou! É, portanto, esse último dia que um mortal deve sempre considerar. Guardemo-nos de chamar um homem feliz, antes que ele tenha transposto o termo de sua vida sem ter conhecido a tristeza. (SOFÓCLES, 2010, p. 104).
Sófocles. Édipo rei. Trad. de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2010.
Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.