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PARTE 3 – “A DIVINA COMÉDIA – PURGATÓRIO”


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 16/05/2024
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          “A Divina Comédia” é dividida em três partes, indo do Inferno até o Paraíso. Nos dois primeiros reinos, quem guia Dante é Virgílio, que, além de conduzi-lo, o coloca a refletir o tempo todo.

         Algo interessante a se pensar sobre o “Inferno”, que não foi dito anteriormente, é que Dante não é o primeiro a ir ao Inferno na história da humanidade, ou, no caso específico, na história da literatura. Homero, na “Odisseia”, envia Odisseu a esse reino; Virgílio, na “Eneida”, envia Eneias; e Dante segue nessa longa tradição de heróis que vão ao submundo. Jesus Cristo, para efeitos teológicos/espirituais, também “desceu à mansão dos mortos”, o que, segundo a lógica de Dante, seria o Limbo, e de lá resgatou algumas pessoas, como importantes personagens do Antigo Testamento e um ou outro indivíduo ilustre e nobre em valores da antiguidade.

         No entanto, Dante não fica no Inferno, pois o seu percurso apenas se inicia naquele terrível lugar. Dante deve escalar uma enorme montanha, dividida em cornijas (terraços), para ver as penas de cada pecador sendo purgada. Na prática, toda pessoa que se encontra no Purgatório mais dia menos dia irá para o Paraíso. A exemplo do Inferno, o Purgatório também possui graus, que são assim arquitetados pelo poeta florentino.

 

 

Mar do hemisfério austral.

Antepurgatório (arrependidos tardios).

1ª Cornija: Orgulhosos.

2ª Cornija: Invejosos.

3º Cornija: Iracundos.

4ª Cornija: Preguiçosos.

5ª Cornija: Avaros e pródigos.

6ª Cornija: Gulosos.

7ª Cornija: Luxuriosos.

Paraíso Terrestre.

 

         O que ocorre ao longo da segunda parte da obra de Dante é que o poeta e Virgílio farão uma longa escalada, e esta (o ato de escalar) não costuma receber muitas companhias. Dito em outras palavras, a maioria das pessoas não consegue superar o “tobogã” que é o “Inferno”, isto é, considera entediante e destoante o ritmo do “Purgatório”. Esclarecendo a concepção medieval sobre o purgatório, diz Hilário Franco Jr:

 

“A concepção do Purgatório como um mundo intermediário nascera na segunda metade do século XII, para matizar o rígido dualismo anterior (Bem/Mal, Céu/Inferno, Salvação/Condenação). Essa concepção respondia às novas preocupações e necessidades sociais, ideológicas e espirituais da época. Reconhecido teologicamente pela Igreja em 1274, o Purgatório era uma realidade recente, mas de conhecimento geral, quando Dante o cantou.” (2000, p. 68).

 

         Eu próprio posso trazer a minha experiência como exemplo. Eu já subi no “Pico do Agudo”, em Sapopema, Paraná, e a vista do topo é gloriosa; porém, a caminhada e os momentos finais, que exigem escalada, não são animadores, ou, ao menos não foram para mim. Alguém pode objetar: “Mas, a graça de Itaca não é propriamente Itaca, mas, o caminho”. Que seja, porém, a caminhada cansa e tudo o que se deseja, ou que eu desejei, era chegar logo ao topo.

         O fato que está além de montanhas e escaladas é que a belíssima poesia permanece em toda “A Divina Comédia”. Eu diria que as duas obras mais belas em matéria de escrita que já li foram “Eneida” e “A Divina Comédia”, o que prova o quão guiada estava Beatriz (que recebeu conselhos de Santa Luzia) ao escolher Virgílio para guiar o florentino. Um momento que é sublime se dá no Canto XI, quando as almas dos orgulhosos cantam o Pai Nosso:

 

“Ó Padre nosso que nos Céus estás,

não circunscrito, mas em todo o amor,

que aos primos entes do teu feito dás,

 

louvado seja o teu Nome e o Valor

por toda criatura, à qual apraz

render graças também ao teu Vapor.

 

Bem venha do Teu reino a nós a paz,

porque de procurá-la, se dos Céus

não vier mais, nosso engenho é incapaz.

 

Como, de seu querer, os anjos teus

fazem, cantando a ti, renúncia pia,

o mesmo façam os homens dos seus.

 

Dá-nos hoje o maná de cada dia,

que, se faltar neste deserto infido,

vai pra trás quem pra frente mais porfia.

 

E como nós o mal que hemos sofrido

a cada um perdoamos, tu perdoa,

benigno, sem cuidar se é merecido.

 

Nossa virtude que preste esboroa

não experimentes co’o antigo adversário,

mas dele nos liberta, que a aguilhoa.

 

Este rogo, Senhor, que último eu digo,

por supérfluo, não é pra o nosso bando,

mas pra os que inda não têm o seu castigo.” (ALIGHIERI, 2019, p. 73

-74).

Representação de Gustave Doré. Canto XI. Os orgulhosos carregando pedras pesadas.

         Conforme avança o “Purgatório”, mais Dante se aproxima do Paraíso Terrestre e do encontro tão esperado com Beatriz. Conforme Dante se angustia ao ver as penas ao longo das cornijas, Virgílio o encoraja dizendo que logo ele verá a sua amada. Isso o motiva a não parar a caminhada.

         Algo que vale a pena ser mencionado é que um anjo, no Canto IX, escreve com a espada na testa de Dante sete “p’s”, que representam os sete pecados capitais. Conforme o poeta sobe as cornijas, “p” por “p” é apagado e a subida fica mais leve. O resultado de toda essa caminhada, que é um aperfeiçoamento do próprio Dante, é que haverá o almejado encontro ele e a sua musa, que de fato se dará no Canto XXX, um dos momentos mais belos até então (algo que está em pé de igualdade, ao meu ver, com o Canto III do Inferno). Porém, que surpresa é ver Beatriz conversar com Dante, pois não será um encontro entre duas pessoas enamoradas. Beatriz repreende Dante e o poeta muito se envergonha e se humilha. Devido à beleza da narrativa, é justo trazer a essência do Canto XXX:

 

1º Dante vê Beatriz:

“Já via, do novo dia ante o retorno,

a parte oriental toda rosada

corar, do azul do céu sereno adorno;

 

e a face do Sol nasceu velada

tanto, que pelo efeito dos vapores,

sustentá-la podia minha mirada;

 

assim, em meio a uma novem de flores

que, de angélicas mãos, subia festiva

e retombava espargindo candores,

 

sobre um véu níveo cingida de oliva,

dama me apareceu num verde manto

sobre as vestes da cor de chama viva;

 

e o espírito meu que, desde tanto

tempo, não fora mais por sua presença

arrebatado, já a tremer de espanto,

 

sem ter pela visão sua conhecença,

mas, por efeito que dela partiu,

de antigo amor senti a força imensa.

 

Quando também na vista me atingiu

o alto poder que, quando ainda criança,

definitivamente me feriu,

 

voltei-me à esquerda, com a confiança

que, correndo pr’a mãe, o infante abriga,

quando assustado busca segurança;

 

pra a Virgílio dizer: “Uma só miga

de sangue não me resta que não trema:

reconheço os sinais da chama antiga”.

 

Mas Virgílio deixara-nos, na extrema

hora; Virgílio, amoroso pai meu

a quem me dei pra salvação suprema;

 

nem pôde o bem, que antiga mãe perdeu,

poupar-me a face do rocio lavada,

do lagrimar que agora a enegreceu.” (ALIGHIERI, 2019, p. 196-197).

 

2º Beatriz responde:

“Olha-me bem! Sou eu, sou a Beatriz.

Como chegar pretendeste a este monte?

Não sabias como é o homem aqui feliz?”.

 

Caiu-me o olhar para a límpida fonte;

que logo desviei, colhendo a vera

imagem da vergonha em minha fronte.

 

Assim parece, ao filho, a mãe severa

como ela a mim pareceu, ao provar

o gosto amargo da piedade austera.” (ALIGHIERI, 2019, p. 197-198).

Representação de Gustave Doré. Canto XXXIII. Dante e Estácio (poeta romano) bebem as águas do rio Eunoé em companhia das ninfas que servem Beatriz no Paraíso Terrestre. Este rio restaura as memórias apagadas pelo rio Letes, deixando apenas as boas ações praticadas.

          Por todo o exposto, posso garantir, ler “A Divina Comédia” para além do “Inferno” é uma aventura fabulosa, que está repleta de episódios belíssimos, como o anteriormente citado. E, para permanecer na esfera metafórica das montanhas, é ter o direito de ver um cenário maravilhoso, até porque o próximo reino é o “Paraíso”.

 

Dante Alighieri. A Divina Comédia – Purgatório. Trad. de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2019.

Hilário Franco Jr. Dante: o poeta do absoluto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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