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Marighella


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 11/11/2021
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Wagner Moura é um ator excepcional! Grande nome da dramaturgia e do entretenimento brasileiro, ele alçou voos distantes na última década e conquistou seu espaço inclusive fora do país. Em 2019 ele resolveu sair da frente das câmeras e se posicionar atrás delas para encabeçar um filme que, naquele momento, era urgente, necessário e apaixonante. Pena que o filme demorou para chegar aos cinemas e não foi por culpa do diretor. Dessa forma o primeiro filme dirigido pelo grande Wagner Moura estreou somente na semana passada, discreto e ofuscado pelo mais recente blockbuster da Marvel. Por um senso de justiça eu preferi não comentar sobre o filme na semana passada, dessa forma, todo o espaço da Coluna dessa semana será dedicado à obra Marighella.

Existem filmes que nos trazem uma sensação boa de nostalgia. No meu caso é impossível comentar sobre Marighella e não recordar dos longínquos anos de 2001 ou 2002. Eram os primeiros anos da minha primeira graduação (em História) e eu gastava um considerável tempo livre na Biblioteca da Universidade folheando antigas revistas O Cruzeiro dos anos de 1930 até meados de 1970. Dentre elas sempre me chamou atenção as inúmeras revistas dos anos 1960, período em que a imprensa — daquela época quase sempre tendenciosa e vendida — escrevia sobre a luta contra a famigerada ditadura. Naquele momento eu ainda nem estudava os conteúdos relacionados ao Brasil, mas a curiosidade por saber quem eram e como agiam os heróis que lutaram para tirar o Brasil da escuridão da ditatura militar falava mais alto. Foi nesse período que eu descobri o sequestro do embaixador americano. Consumi avidamente a reportagem como quem lê um romance. Naquele momento eu pensei: “por que ninguém fez um filme sobre essa história ainda? ”

Mal sabia eu que isso já tinha acontecido,  a história havia sido contada no filme O Que é Isso, Companheiro, de 1997. Quase vinte anos depois Wagner Moura repagina essa história no cinema. Mas ele fez mais, deu nome, rosto e voz aos heróis da ação, dentre eles Marighella, grande nome da ALN – Aliança Libertadora Nacional. Pena que por oposição ou má sorte o filme ganhou uma aura de passado do tempo. Isso porque sua estreia deveria ter acontecido em 2019, mas só chegou aos cinemas do Brasil na semana passada. Exibido e premiado em inúmeras mostras e festivais internacionais em 2019, ele chamou atenção demais e sofreu uma clara ação de censura por parte da Agência Nacional do Cinema, sob ordens do atual (des)governo federal. Não bastasse isso, em seguida chegou a pandemia de COVID-19 fechando as salas de cinema e atrasando ainda mais a estreia de Marighella.

Em 2019, as produções artísticas com esse teor tinham uma função muito específica, era o primeiro ano do governo Bolsonaro, caracterizado pelo ódio, pelo retrocesso e pela exaltação da ditadura, isso sem falar no flerte com o fascismo! Por isso, criar obras de entretenimento que instruíssem o povo e recordassem tanto seu valor, quanto sua história e sua luta eram uma primeira necessidade. Um exemplo de obra dessa leva, que buscava trazer reflexão sobre a realidade política e social do Brasil, foi o excelente e subversivo Bacurau. Mas, diferente de Bacurau, Marighella não pôde estrear em 2019 e chegou agora na rabeira da história. Independente disso, mesmo atrasado em seu timing, esse filme ainda se mostra extremamente necessário.

Marighella é necessário por vários motivos, mas o primeiro deles, com certeza, é seu senso de justiça. Vendido pela ditadura como “inimigo público, terrorista, subversivo ou extremista”, Carlos Marighella, de maneira histórica, recebeu uma anistia póstuma em 2012, quando o Estado Brasileiro reconheceu seu assassinato brutal por parte da ditadura e exaltou o valor de sua luta em favor da liberdade e da democracia. Mas tirando isso, ninguém se lembra que essa figura histórica era um típico brasileiro, mestiço (da união de uma negra com um italiano), pobre, estudante brilhante, poeta, professor, escritor, deputado, ativista democrático de esquerda, ou seja, um grande homem reduzido a uma sombra.

A obra de Wagner Moura busca trazer esse homem das sombras à luz, ao mesmo tempo em que busca ilustrar o medo e as dificuldades de um dos períodos mais obscuros da história do país, o Regime Militar. Recentemente exaltado nas ruas por algumas pessoas com muita falta de senso histórico (há quem diga que é falta de caráter!), o Regime Militar de 1964 a 1985 foi caracterizado pela corrupção, falta de liberdade, utilização excessiva da força bruta, opressão, tortura, estupros e assassinatos (conforme relatório final da Comissão da Verdade, divulgado em 2014). Assim, muito mais do que uma cinebiografia, o filme busca apresentar para as novas gerações as mazelas da história recente e exaltar aqueles que deram a vida pela liberdade atual.

Diferente de outras cinebiografias, Moura não quis dar um tom imparcial ao seu filme, ele escolheu um lado, mesmo sabendo que isso iria reduzir seu público final. Mas isso, realmente não importou muito, pois no atual contexto, fazer cinema no Brasil, por si só, já é um ato de rebeldia e impossível de agradar a todos. Dessa forma, ele usa de sua experiência para criar grandes sequências de ação, como, por exemplo, o assalto ao trem de armas que abre o filme, e também para dar peso aos personagens por meio de sua expressividade. Prova disso é a demasiada utilização do plano fechado.

Ao tomar partido, o filme de Moura elege quem são os verdadeiros patriotas, no caso os membros da ALN, contra os falsos patriotas que estão no poder. Partindo disso, dois personagens constroem esse embate dicotômico: por um lado Carlos Marighella, muitos mais humano, inteligente, mas, por vezes, vulnerável e por outro, Lucio, o delegado fascista, que personifica o verdadeiro vilão, extremista e caricato. Um recurso muito instrutivo, usado habilidosamente para não deixar nada implícito na trama.

O roteiro escrito por Felipe Braga e pelo próprio Wagner Moura é falho em vários momentos, principalmente em relação aos seus diálogos. A meu ver esses diálogos deveriam soar um pouco menos panfletários para que tivessem um tom mais profundo de naturalidade. Mas, em se tratando de um filme que tem intenções didáticas claras, isso acaba se tornando irrelevante. Até porque o roteiro surpreende quando faz com que a história real contada transite entre os gêneros. Digo isso porque seu gênero é cinebiografia, mas facilmente confunde-se com um filme policial. Por vezes, carregado de realismo em seus personagens históricos e em seguida quimérico em suas sequências ricamente metafóricas com personagens fictícios criados para trama.

Tecnicamente alguns destaques precisam ser dados, primeiro é a grande capacidade que Moura demonstrou em construir uma obra muito mais comercial do que Cult em vários momentos. Você perceberá isso nas cenas de ação e perseguição, que ficaram no mesmo patamar de grandes obras hollywoodianas, o que é muito bom. Além disso, a trilha sonora é um deleite à parte. Todas as músicas são pérolas nacionais e se encaixam perfeitamente na trama. Dentre as músicas, saliento aqui “Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória” ou “Bandistimo Por Uma Questão de Classe”.

Já o elenco vem recheado de estrelas nacionais, Adriana Esteves, Humberto Carrão, Herson Capri e vários outros nomes conhecidos entregam grandes interpretações. Mas quem chama realmente a atenção são os dois polos opostos, o vilão de Bruno Gagliasso e o protagonista interpretado por Seu Jorge. Confesso que quando fiquei sabendo, ainda em 2019, que Seu Jorge seria o protagonista eu havia ficado preocupado. Mas em poucas cenas o público irá se esquecer completamente do cantor e irá ver em cena apenas o ator completamente envolvido no papel de Carlos Marighella, uma boa surpresa. Vamos à trama!

Como já dito anteriormente, o filme busca contar a história de Carlos Marighella, em 1969, um homem que não teve tempo para ter medo. Num contexto onde encontra-se de um lado, uma violenta ditadura militar e do outro, uma esquerda intimidada. Ele luta juntamente com a Aliança Libertadora Nacional pelo país que sonha para seus filhos. Cercado por guerrilheiros 30 anos mais novos e dispostos a reagir, o líder revolucionário escolheu a ação e foi até as últimas consequências.

Por que ver esse filme? Porque esse é de longe a obra nacional mais ousada de 2021, e teria sido também em 2019 caso tivesse sido lançado. Deve ser visto porque é subversivo de uma forma muito positiva, porque é polêmico, porque é didático e porque é brutal. Para mais, ele é um filme muito consciente e eu até diría que, por isso, toca direto na consciência de muita gente! Quando você for ao cinema verá que ele está discreto dentre os demais cartazes, com sessões reduzidas e em horários nada convidativos. Mas faça um esforço! Essa obra pode não ter apelo comercial, mas ninguém pode negar que tem um bom apelo político/social às vésperas de um ano eleitoral. Boa sessão!

 Assista ao trailer oficial:

Odailson Volpe de Abreu


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