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Instinto Materno


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 05/04/2024
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Essa semana pretendo discorrer um pouco a respeito do filme Instinto Materno, mas antes de tratar propriamente do filme, cabe algumas reflexões. O mundo tem mudado rapidamente em muitos aspectos. No que compete aos costumes e aos valores essas mudanças podem ser consideradas ainda mais radicais. Esse fato colabora para que os membros da sociedade atual olhem para trás e desenvolvam um misto de encantamento e repúdio para as práticas comuns de tempos nem tão distantes. Os anos dourados que sucederam o período pós Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950 e 1960, tendem a ser fascinantes e sempre despertar interesse do público, bem por isso, são explorados periodicamente pelo mundo do entretenimento, seja por meio da literatura, dos seriados ou dos filmes. Se, em outros momentos, as obras de entretenimento buscavam abordar aspectos mais pessoais como a amizade ou o espírito rebelde desse período, atualmente o que se vê é uma supervalorização de tudo o que era menos evidente e mais velado naquela época. Dessa forma, quem rouba a cena são os variados estereótipos das mulheres dos anos dourados do século passado, sobretudo, da mulher estadunidense, vendida ao mundo por meio do “american way of life” como a mulher ideal.

Olhar para trás e ver a mulher como um objeto submisso, que usufruía calada, atônita e coadjuvante de tudo o que um provedor masculino poderia oferecer se tornou um nicho da indústria do entretenimento. Expor as fragilidades dessas mulheres, atualmente, parece ser algo que realmente prende a atenção do público. Em contrapartida, permite às mulheres e homens da atualidade um olhar crítico sobretudo isso, principalmente quando a realidade é colocada na balança. Essa premissa pode ser muito bem observada de maneira muito explícita na série Palm Royale, que estreou há alguns dias no streaming da Apple, mas também está presente de maneira contundente no filme destaque na coluna dessa semana. Se Palm Royale traz uma crítica social ácida à hipocrisia da alta sociedade feminina no final dos anos 1960, Instinto Materno, por sua vez, trilha uma linha mais tênue abordando a mesma hipocrisia, dentro do âmbito da família perfeita, algo tão difundido como realidade incontestável para esse período dos anos 1950 e 1960.

Em Instinto Materno, o diretor Benoît Delhomme resgata o estereotipo da mulher perfeita, que vive a vida com seu salto alto e vestidos em estilo tubinho, além da presença constante na comunidade, enquanto deixa a casa impecável para o provedor do lar encontrar nada menos que a perfeição após o fim de um dia de trabalho. Essa imagem padronizada da mulher é explorada e desconstruída ao longo do filme, à medida que as protagonistas enfrentam seus próprios conflitos e desafios.

Baseado no livro homônimo de Barbara Abel, a versão cinematográfica sustenta muito bem a trama, alternando entre suspense e drama. O ambiente histórico do período proposto é bem retratado, sua reconstrução é perfeita, bem como as composições de cena. Ganham destaque o figurino das protagonistas, que reflete as mudanças emocionais ao longo da história. Falando em história!

A trama acompanha a vida de duas vizinhas e melhores amigas, Alice, interpretada por Jessica Chastain e Celine, interpretada por Anne Hathaway. A harmonia da vizinhança é quebrada quando o filho de uma delas sofre um acidente fatal. Celine culpa Alice pela morte de seu filho, e esta, por sua vez, se sente culpada e paranoica, acreditando que Celine pode estar buscando vingança. O filme mergulha em uma narrativa onde a tensão e o suspense se entrelaçam com os dramas pessoais das personagens principais.

A trama se constrói sobre as bases do drama e do suspense, mas é no primeiro que o filme mostra sua melhor versão. Os momentos que expõem o luto materno e as ambiguidades da vivência materna são tocantes, potencializados pelo talento das atrizes oscarizadas que dividem o protagonismo. Ambas em cena, são magnéticas. No entanto, o suspense, que poderia ser o grande trunfo dessa produção, muitas vezes se torna previsível, com elementos típicos do gênero que não surpreendem o espectador mais experiente.

Porém, vale a pena ressaltar que o que salva Instinto Materno, sem dúvidas, é a atuação de Hathaway e Chastain. As protagonistas conseguem implementar o desejo do diretor de provar que sim, mulheres são insanas e perigosas, capazes de tudo para proteger sua família, mesmo no paraíso platônico dos anos 1960. O embate entre as mães se desenrola em um jogo de poder e emoções, destacando a complexidade dos papéis femininos na sociedade.

Embora ensaie algumas reflexões sobre maternidade compulsória e esgotamento materno, o filme, infelizmente, fica na superfície ao tratar dessas questões, preferindo focar no suspense, que fica sempre aquém do esperado. A ausência paterna no cuidado com as crianças, algo tão comum para aquela época e ainda tão presente nos dias de hoje, é negligenciada, enquanto os clichês sobre o tal instinto materno são reforçados. A trama, na busca por oscilar entre o suspense psicológico e o drama, perde uma oportunidade ímpar de explorar mais profundamente esses temas ainda urgentes.

Por que assistir a este filme? Instinto Materno é uma obra interessante que merece ser vista pela forma como se propõe a despertar uma reflexão sobre a feminilidade, a maternidade e as relações interpessoais. Ao apresentar uma realidade distante de um mundo que já não existe mais, permite ao espectador contemporâneo analisar seu próprio tempo e ponderar sobre como as coisas evoluíram ou ainda precisam melhorar, sobretudo em relação ao papel das mulheres na sociedade e na família. O espectador mais atento e crítico pode se incomodar ao perceber que o longa acaba se perdendo em uma trama rocambolesca e previsível. Um clima maior de suspense, com plot twists mais poderosos e menos clichês, fariam dessa obra um grande filme. Mas, mesmo assim, é preciso ressaltar que as performances das protagonistas falam mais alto e garantem momentos de tensão e emoção, o que torna Instinto Materno uma experiência envolvente para o espectador. Por isso, merece ser visto na tela grande. Boa sessão!

Odailson Volpe de Abreu


Anuncie com Jornal Noroeste
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