O Alienista: quando a loucura mudou de endereço
Voltar a escrever sobre literatura é como revisitar uma velha casa — as estantes nos reconhecem, os personagens nos recebem com um aceno de cabeça, e os autores, esses imortais, cochicham aos nossos ouvidos: “demorou, mas voltou”.
E para esse recomeço, escolhi uma obra que é, ao mesmo tempo, retrato e caricatura do Brasil: O Alienista, de Machado de Assis. Publicada originalmente em 1882 nas páginas da Revista Brasileira, a novela (que não tem mocinha nem final feliz, mas sobra lucidez) revela o gênio de um autor que, se escrevesse hoje, talvez fosse bloqueado por excesso de ironia e falta de paciência com a burrice alheia.
O enredo é simples como só as grandes sátiras sabem ser: Simão Bacamarte, médico de renome, resolve estudar a loucura. Para isso, constrói a Casa Verde, um hospício na cidade de Itaguaí. Inicialmente, o critério de internação parece científico. Depois, parece político. Em seguida, religioso. Mais tarde, estético. Por fim, a loucura é diagnosticada nos sãos — e a sanidade, essa imprevisível, começa a incomodar.
A genialidade de Machado não está só na crítica aos métodos médicos da época, mas na desconstrução do poder disfarçado de ciência. A cada página, ele questiona: quem é louco? Quem decide isso? E, mais ainda: quem lucra com essa decisão?
Com a pena afiada, Machado transforma Bacamarte numa alegoria do autoritarismo travestido de saber. A cidade, num espelho de um país onde o absurdo é rotina, e o riso é o único antídoto possível. E o leitor? Esse que ria com os olhos arregalados, porque a caricatura às vezes se parece demais com a manchete do dia.
Revisitar O Alienista hoje é um ato de sanidade. É lembrar que a literatura brasileira nasceu crítica, mordaz e profundamente inteligente. Não por acaso, ainda relutamos em aceitá-la em massa: há quem prefira a alienação à alienista.
Mas, se a coluna voltou, é para isso: para lembrar que pensar ainda é permitido — e que Machado, mesmo enterrado no século XIX, segue vivo e impiedoso como sempre.