A moça

Dormir. Sem sonhos, sem pesadelos. Dormir ininterruptamente, sem intervalos, desde o momento em que se deita até quando o corpo despertar. Sem sobressaltos ou interrupções abruptas. Esse o primeiro e eterno amor dela.
Cresceu franzina e serelepe e, como não poderia deixar de ser, traz consigo marcas das fraturas sofridas na infância. Cresceu na pobreza, muitas vezes resvalando para a miséria. A escassez material compensada pela solidariedade, carinho e amor em abundância recebidas da mãe, irmãs e pessoas próximas.
Pai ausente pelo trabalho. Pai ausente na presença, no abraço, no afeto. Pai presente nas exigências, na rigidez das lições da vida. O buraco foi preenchido pela mãe, que acolheu as filhas em seus braços, tornando-se não somente o porto seguro, mas a bússola que apontaria o caminho da integridade, honestidade, transparência e bondade.
A relação mãe e filhas se tornou uma fortaleza, tornando-as, assim como as Amazonas, mulheres independentes, fortes, obstinadas e leais. A teimosia já estava presente desde o nascimento, passada geneticamente.
Às vésperas da adolescência, teve a certeza de que, para adquirir bens, imprescindível seria trabalhar e assim o fez, sem deixar os estudos. E continua em ambas as tarefas até os dias de hoje.
Cresceu. Tornou-se uma bela moça, corpo esguio, estatura mediana, pele branca. Machucou coração de alguns, dançou com outros. Casou-se jovem, tão jovem que o motivo do matrimônio não foi o certo, ou seja, o amor. E não sendo o amor a causa, a consequência é o término da relação.
Obviamente, o fim não esmoreceu a sua vontade de continuar a sua jornada. Continuou a trabalhar com afinco, sendo destacada em suas funções. Porém, no trajeto, foi colhida pela paixão e a paixão, como sabemos, se é correspondida, nos machuca e quando não é, nos esmaga.
Enquanto era machucada e se dirigia a própria destruição interior, resolveu que era hora de mudar de profissão, investir em si.
Começou uma nova carreira, com uma nova parceira, abrindo seus horizontes e visão de vida.
Foi obrigada a se reconstruir, a reiniciar, a superar obstáculos. Como as aves, precisava de pessoas iguais para obter sucesso profissional. Encontrou. Pessoa com a mesma integridade. Mesma honestidade. Mesmos princípios. Mesmo coração bom e generoso. Prosperaram.
A tortuosidade do caminho lhe trouxe inseguranças não compartilhados, silenciosos medos, manias incontroláveis. Aprendeu a não se mostrar por completo, a viver consigo mesmo, a não preocupar os entes queridos.
Nem nos piores momentos busca o socorro, não expõe seus sonhos e angústias. Muitas vezes para fugir de si, se dedica ao outro. Tal como uma moeda na palma da mão, somente mostra um lado seu, mantendo o outro escondido a sete chaves.
Hoje, quem a vê contempla uma rosa, bela mas munida de muitas defesas. As faltas e ausências deixaram marcas. A solidariedade, aconchego e amor viraram dádivas. Cresceu forte, independente. Tornou-se a mulher e o homem de seu Lar. Conquistou seu espaço.
Quem se torna seu amigo, tem seu carinho, lealdade, doação e sinceridade. Quem não, tem seus ouvidos, seus conselhos e sua paciência. Todavia, seja quem for, ninguém tem acesso ao seu interior, aos seus sonhos, desejos, angústias, insegurança e medos. Segredos guardados a sete chaves.
Podemos chama-la pelo seu nome ou por qualquer outro adjetivo. Prefiro simplesmente defini-la como moça, pois amadureceu sem envelhecer.

