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Palavras, palavras e mais palavras!


Por: Jacilene Cruz
Data: 24/06/2024
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As palavras fazem parte de nós com tanta força e há tanto tempo, que parecem que existiram desde sempre. Como se tivessem surgido juntamente com a humanidade, e não depois, através da adaptação, afinal, nenhum órgão do corpo humano é usado exclusivamente para falarmos... Aff! Muitas palavras!

Creio que isso não as deixam chateadas. Nenhum órgão é delas, mas usam muitos: do abdômen à cabeça. Espaçosas essas danadinhas... Bom, antes que eu me perca no trajeto corporal das palavras, trato de me situar e voltar à infância. Na maioria das vezes, gosto dessa viagem temporal para soltar alguns vocábulos... ficou feio né? Volvo às palavras.

Criança arteira, infância recheada de histórias. São muitas. Entretanto eu, hoje mulher permeada de antíteses, sempre me apego a essas contradições para dizer. Nasci no campo, para os cruzalmenses, na roça. Expressão usada, pelos citadinos, com um quê pejorativo. Me diminuía e despertava o desejo de ser grande – da cidade. Como se nascer na zona rural fosse pequeno. Equivocado pensamento de criança.

Quem sabe, em outro texto, retome a vontade velha de ser grande.

Por hora, volto a ideia primeira para esse texto. Quero falar de palavras específicas: as da roça. Aquelas não valorizadas e pseudosinônimo de pouca escolarização, assim disse Marcos Bagno[1] em Preconceito Linguístico.

Se eu disser para vocês que gostava (e ainda gosto) muito de comer fato cozido, provavelmente me responderiam com uma pergunta:

- O quê cozido? E eu, rindo muito, de lacrimejar os olhos, repetiria:

- De fato, vocês não gostam?!

Poderia ficar o resto dessa página indo e vindo na escrita desse diálogo, mas comer fato é, de fato, uma das minhas lembranças mais saborosas. É uma delícia! Não vou castigá-los mais, me refiro ao intestino e vísceras de suínos e bovinos em especial. (DICIO, 2024, s/p).

Corria pra casa para comer. Chegava botando os bofes para fora, mas quando me sentava frente à mesa, o bofe era a primeira coisa que comia...

(Naquela época, pelas nossas bandas, bofe não se referia a um ser do sexo masculino).

Sendo assim, o pulmão era uma das partes mais disputadas. Os gominhos macios que todos queriam.

Saudades dos tempos em que os fatos me deixavam muito mais alegres e esperançosas do futuro.

Iguaria servida, em geral, no almoço, era uma “comida pesada”. Infelizmente, não se tinha muito tempo para o descanso. Logo a família se levantava e ia para roça.

A viagem não era longa, meu pai não tinha muitas terras, mesmo perto, não podiam esquecer de levar a galeota. O “e” era pronunciado como “i”, então, era a “galiota" mesmo.

Acho que essa era a “palavra que mais me magoava”. Sempre que falava, perguntavam: o que é isso? E eu respondia triste, já antecipando a observação posterior:

- Galiota é carrinho de mão.

- Ah tá, esqueci que tu é da roça...

Como doía. Se eu pudesse imaginar que o nome pelo qual chamava aquele meiozinho de transporte, divertido brinquedo de criança era derivado de outro muito maior, não teria doído e não teria parado de falar. As galés eram embarcações antigas com vela e remos. Bonita essa definição!

Só conheci o Cunha[2], muito tempo depois, foi ele quem me disse tudo isso.

Creio que está ficando enfadonho.  Já palavreei demais. Mas não posso colocar um ponto final nesse texto sem antes dizer que sinto falta do capote. Eu só não, o Gregório de Matos também, afinal foi ele quem desejou que de algodão fosse o capote da Bahia[3].

Um casaquinho de algodão vai bem nesses tempos de frio, né?!

Hoje, quando o preconceito linguístico é praticado, não apenas pela ignorância, mas também por uma pitada de maldade, não me incomoda mais. Busco as reminiscências daquele tempo na minha memória. Do cozido de fato com pirão, de brigar por um pedaço de bofe, de sentar na galiota e ser empurrada (privilégios de filha caçula) e por fim, de vestir meu capote nas frias manhãs de inverno.

Meus amigos da cidade não sabiam disso, mas as palavras deles que tanto me magoavam também estavam longe da perfeição. Ainda bem!

 

REFERÊNCIAS

DICIO – Dicionário

 Online de Português. https://www.dicio.com.br/filosofia/. Acesso: 19 de JUNHO de 2024.



[1] Marcos Bagno, professor do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília (UnB). Escreveu vários livros, entre eles A Língua de Eulália e Preconceito Linguístico.

[2] Cunha, é Antônio Geraldo da Cunha, autor do Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Este dicionário mostra, entre outras coisas, a origem das palavras.

[3] Paráfrase da última estrofe do Poema Triste Bahia do poeta barroco Gregório de Matos Guerra.

Jacilene Cruz


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