As laranjas e as grandes questões da infância
Eu poderia começar esse texto invocando a letra da música Velha Infância[1], que embora seja uma música de amor, traz um ar pueril e inocente, como deve ser esse período da vida. Mas puerilidade e inocência não fazem desse ciclo, que tem sido cada vez mais curto, uma etapa de descrédito, carregado de “inexperiência, dependência e incapacidade de corresponder a demandas sociais mais complexas.” (MORELIM, 2024, s/p).
Por essa razão, até hoje ecoa nos meus ouvidos a voz de Mainha:
— Criança não tem vontade.
E eu, no auge dos meus quereres, respondia em silêncio:
— Mas eu tenho.
Em um misto de teima e razão, sabia que não era bem como ela dizia. Numa época em que abraçar, beijar e dizer que amava os filhos era um tabu, eu completava minha muda resposta:
— A senhora é quem pensa que não...
E continuava minha sina em tentar entender algumas coisas que para mim não faziam o menor sentido. Ou como a grande questão que trarei ainda nesse texto: compreender o mundo que me cercava.
Como já sinalizei em outros escritos, eram as laranjas que nos davam o cuscuz de cada dia. Então, não podia ser diferente, delas surgem o maior questionamento da minha “velha infância”:
— Por que havia a “Laranja Bahia[2]”, mas não a “Laranja Vitória”?
Torcedora do rubro-negro, segui, anos a fio, inconformada, insubmissa, impaciente e indócil. Contrariando as falas de Mainha, dava vazão à minha vontade e questionava a inexistência de uma fruta com o nome do meu time do coração.
Dessa forma, sem me dá conta, menosprezava o delicioso cítrico baiano.
Ele se tornou meu arqui-inimigo, na mesma proporção que as tradicionais equipes da Boa Terra. Eu não admitia a doçura da Laranja de umbigo. Chegando, inclusive, a dizer que a Pera era mais doce. Até resmungava que não gostava daquela que levava o nome da equipe rival.
Somava-se a tudo isso, o Vitória ser “freguês” do Bahia. Não tinha como gostar daquela iguaria mutante, de casca áspera e com um complexo sabor agridoce.
O fato incontestável é que eu me traía. Não enquanto torcedora, mas enquanto degustadora. Embora “degustar” seja uma palavra antiga, virou moda recentemente. Gourmetizaram o verbo que pra mim nada mais é senão “comer e se lambuzar”.
Enquanto eu me lambuzava com a Laranja pera, meus olhos se encompridavam para a outra. Desdenhava, quando na verdade, queria comprar.
Hoje, longe da Bahia e das laranjas plantadas por Painho, continuo me questionando e cheia de vontades. Na distância tanto física quanto temporal, a rivalidade deu lugar a uma saudosa e adocicada lembrança, como eram as “umbigudas”.
REFERÊNCIA
MORELIM, Raquel Marques. O conceito de infância ao longo da história ocidental. Disponível em: https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/educacao/o-conceito-de-infancia-ao-longo-da-historia-ocidental.htm. Acesso 07 de abril de 2024.
[1] Música composta por Pedro Baby, Marisa Monte, Davi Moraes, Carlinhos Browm e Arnaldo Antunes. Cantada pelo trio Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, no álbum Tribalistas.
[2] Laranja originada da mutação natural do cítrico plantado no Estado da Bahia.
[3] Imagem disponível em: https://www.tudodasanta.com.br/products/fn-laranja-baia-importada-kg