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A culpa é de Carlos e de Drummond também


Por: Jacilene Cruz
Data: 29/04/2024
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Ser caçula numa família é, às vezes, visto como algo bom. Creio que para maioria de nós, raspa de tacho, de fato é. Sendo a mais nova de dez filhos, tive muitos privilégios, confesso. Revendo vários deles, afirmo que muitas concessões a mim dadas, eram injustas para com meu irmão, um pouquinho mais velho que eu.

A exposição dessa parcialidade fraterna fica para outra escrita. O que pretendo hoje é dizer que, se vocês estão me lendo agora, a culpa é de dois carlos. Entretanto, antes de entrar nesse mérito, cabe relatar que tive uma infância ladeada por imagens.

Não sei se falei antes, mas meu pai sempre cuidou de nos fazer estudar, pelo menos até terminar o segundo grau, antigo colegial, atual e não tão bem-vindo, Novo Ensino Médio. Por ser a ponta de rama, enquanto eu dava os primeiros balbucios, meus irmãos mais velhos estavam terminando essa etapa de ensino. E os livros didáticos descartados por eles, eram objetos de diversão, muita diversão.

Dois, em especial, prenderam minha atenção durante os primeiros anos da infância. Eram de inglês. A imagem de capa era a mesma: uns jovens tocando e cantando, como se fossem um grupo musical. Eu não sabia ler, mesmo que soubesse, o livro era em inglês, não daria certo. Mas as figuras externas e internas habitaram, e até hoje habitam, meu imaginário.

Foi a primeira vez que vi um homem magérrimo deitado numa cama de pregos e outro igualmente magro tocando flauta para um cesto. Frutas ainda não experimentadas, pessoas, roupas e cortes de cabelos, que não davam o ar de sua graça por nossas bandas, se descortinavam diante dos meus olhos. Aquelas distantes ilustrações me prendiam horas e horas. E eu criava e recriava mentalmente histórias para cada cena vista e revista.

Foi através do experenciado pelos mais velhos que acabei vivendo outras realidades. Uma delas foi não fazer o ginásio, hoje segunda parte do Ensino Fundamental, na mesma instituição escolar que eles. Dessa forma, não estudei no Colégio Estadual Alberto Tôrres. Através da interferência da minha irmã Lília, fui para o Colégio Municipal Jorge Guerra. O primeiro era um mundo vasto e incontrolável, o segundo, pequeno e em forma de flor, levava o nome de um “cidadão ilustre” da pequena cidade de Cruz das Almas.

Então com onze anos, na quinta série, eu tentava me fazer notar em meio a tantos outros ultimogênitos, segundogênitos ou primogênitos, quando recebi a notícia que Carlos Drummond de Andrade havia falecido. A comoção da professora de português e da orientadora chegou até a mim, fiquei triste, chorosa, lamentei tão boa pessoa ter partido. Foi aí que, pra minha surpresa, ouvi a orientadora dizer:

Jacilene, amanhã vamos ler poemas, e os de Drummond é você quem vai trazer e ler.

O desespero se instaurou, porque, apesar de todo meu chororô, o único Carlos que eu conhecia era o meu irmão, Cacau. Que, por sinal, gostava de escrever uns poemas-piada...

Não tinha como ir na biblioteca, copiar no caderno alguns versos do ilustre mineiro e ler para os colegas já no dia seguinte. Estava entre a cruz e a espada. Nesse intervalo de desespero, me bateu a “brilhante” ideia: fazer um poema.

Imitaria os carlos e talvez não passasse a vergonha de dizer que não tinha como ir na biblioteca ou que não havia nenhum livro de poemas em casa.

Pensado e feito. Minha primeira poesia oficial ficou assim:

Quando era criança

não sabia falar

Agora que cresci

já sei te amar

Não adianta chorar

amar é viver

Se eu te amo

Pra que sofrer?

Não lembro a desculpa que dei antes de ler minha primeira produção, no coreto da escola, para todos os alunos. Contudo, lembro de muitos sorrisos de canto de boca e interpretei o das professoras quando acabei de recitar meu texto, como se ele fosse bobo, infantil e sem graça. Eu mesma me desengracei ao revelar meus sentimentos para todo o colégio. Também por não ter homenageado Drummond, afinal, só conhecia o outro Carlos e sua escrita um pouco engraçada.

Passado esse apocalipse, acalmei e continuei rabiscando uns versos de amor ridículos. Não eram engraçados, como os do meu irmão Carlos, tampouco grandiosos como os de Drummond, mas continuei empilhando palavras.

Os risos foram rareando, os poemas aumentando. Saiu até um livrinho recentemente pela Desconcertos[1]. Uma mistura de presenças e ausências comum na vida de todos nós!



[1] AS IMPRESSÕES DAS PONTAS DOS DEDOS DE MAINHA NO CUSCUZ. Disponível em: https://desconcertoseditora.com.br/produto/as-impressoes-das-pontas-dos-dedos-de-mainha-no-cuscuz-2/

Jacilene Cruz


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