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O caderno


Por: Jacilene Cruz
Data: 08/07/2024
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Os cadernos sempre me fascinaram. Ainda hoje, passeio pela seção onde eles ficam perfilados nas papelarias, com os olhos brilhando. Não posso negar que, de vez em quando, não resisto e compro um, mesmo que não precise.

Creio que o fascínio acompanha muitas pessoas da minha geração, mesmo aquelas que não são afeitas ao hábito de escrever. E por falar em escrever e caderno, já me coloco ao lado de Toquinho que descreveu esse objeto como ninguém: “Sou eu que vou seguir você/Do primeiro rabisco até o bê-a-bá/Em todos os desenhos/Coloridos vou estar/A casa, a montanha, duas nuvens no céu/E um sol a sorrir no papel [...]” (Toquinho, 1985).

Também me ladeio a Luís Fernando Veríssimo na magistral crônica “Caderno Novo[1]”.  Um texto divertidíssimo que traz à tona sensações que há muito tempo adormeceram. Eu garanto, vale a pena ler.

Por enquanto, esqueçam esses dois que acabei de falar, pois o caderno que sempre me deslumbrava era outro: o de receitas que minha Mãe folheia até hoje. Preciso mudar o tempo do verbo, deslumbrava não, deslumbra!

Pequeno, poucas páginas e capa vermelha azulada, surradinha... Ele me seduzia. E a sedução era, na maioria das vezes, adocicada.

Creio que aquele maço de folhas pautadas, preso por um fino espiral foi um dos responsáveis por me alfabetizar, mesmo a letra de Mainha não sendo o que se pode chamar literalmente de caligrafia.

Lembro, por exemplo, que foi nele que aprendi que farinha de guerra e de mandioca são o mesmo alimento, assim como massa puba e carimã[2]. Abro parênteses para dizer que o cuscuz de puba é uma iguaria que poucos têm a oportunidade de provar. Velhos tempos, maravilhosos sabores.

Além disso, naquelas escritas encantadas, aprendi que Paris era a capital da França, quando Mainha fazia o Bolo Paris. Também que, quem nasce na cidade do Rio de Janeiro era carioca, afinal lá se comia o Pãozinho Carioca.

Da mesma forma, aprendi que ralar o coco pelas costas, deixava-o muito mais fino, embora várias vezes tenha ralado meus dedos junto, e colorido de vermelho-sangue a branca polpa daquele delicioso fruto. Plantado rente a cerca, enfeitava o pequenino sítio.

 



Fonte: cadernos de receitas de Mainha, 10ª e 27ª página, respectivamente

 

Era um mundo de informações contidas em tão poucas páginas.

Lá, diga-se de passagem, podíamos ver que os acordos ortográficos entre os países lusófonos chegavam devagar. Com o passar dos anos percebi que Mainha não escrevia errado as paroxítonas, elas é que perdiam seus acentos e isso demorava a assentar na escrita diária, corriqueira e apressada de quem vivia entre a falta de tempo e o duro trabalho.

 




Fonte: cadernos de receitas de Mainha, 1ª, 2ª e 8ª página, respectivamente.

 

Ela retirou o acento de bolo, mas ainda o mantinha em seda, embora ambas sejam paroxítonas. Provavelmente havia muito mais contato com a massa que com o tecido. 

Por fim, o livro de receitas de Mainha me ensinou economia. O pão feito em casa alimentava mais e custava menos que o de sal[3] comprado pronto. Era um deslumbramento ver a massa crescer, furava-a com o indicador quando ela tinha que apanhar para crescer de novo. Que química maravilhosa!

Há muitas outras delícias no Caderno de Receitas de Mainha. Há tantas memórias que revisito toda vez que folheio suas páginas amareladas, hoje digitalizadas. Talvez em um segundo momento, conte para vocês. Por ora, me recolho a saudade que deixa tudo que comíamos na infância, com um sabor inigualável.

 

REFERÊNCIA

 

O CADERNO. Intérprete: Toquinho. Compositores: Toquinho e Mutinho. In: A Luz do Solo. São Paulo. PolyGram do Brasil. 1985, faixa 12.



[1] Disponível em: https://profhelena4e5ano.blogspot.com/2010/12/caderno-novo.html. Acesso 05 de jul. de 2024

[2] A massa puba ou carimã consiste na A mandioca posta na água ou enterrada na lama até amolecer e fermentar. Disponível em: https://www.dicio.com.br/puba/. Acesso 05 de jul. de 2024.

[3] Nome dado ao pão francês em algumas cidades da Bahia.

Jacilene Cruz


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