A generic square placeholder image with rounded corners in a figure.


Velho aos quarenta anos


Por: Luciano Rocha Guimarães
Data: 18/08/2022
  • Compartilhar:

 

O responsável por tudo foi um guarda-de-trânsito. Aconteceu alguns anos atrás. Parou-me na rua e pediu minha carteira de motorista. Coisa mais normal. Afinal, para que servem os guardas-de-trânsito se não para fiscalizar o trânsito. Ao devolvê-la, aconteceu. Como num instante congelado no tempo percebi o que não queria ver. Estou ficando velho. Passaram-se vinte e dois anos desde que tirei minha carteira pela primeira vez. Nela estava escrito:  "válida até 2004". Tudo voltou atrás. A lembrança surgiu com o espanto que senti ao ver a data. Afinal, para quem tem dezoito anos, os quarenta parecem tão longe. Mas chegaram. E foi tão rápido! A bolha de sabão multicor é efêmera. Logo se desfaz. Transitoriedade. É este o sentido de “vaidade” no livro sagrado de Eclesiastes. “Tudo é vaidade e correr atrás do vento”. A vida passa rápido. Tempus fugit.

 Senti saudades daqueles dias de verão intenso, onde o sol teimava em permanecer no cume do céu. Hoje, já iniciou o seu percurso de volta ao crepúsculo. O verão pode lá ter os seus encantos, mas o crepúsculo é muito mais bonito. E poético. Como dizia um personagem do Guimarães Rosa: “Toda saudade é uma espécie de velhice”.

Despertados os sentidos, veio a confirmação também em casa. Diante do espelho, ela tentou arrumar a calça que teimava em deixar a mostra o tênis. “Coloque as calças na cintura, meu amor!”, orientei-a paternalmente. O que eu não sabia era que já estavam na cintura. Foi ela que cresceu. A menininha que eu embalava no colo ficou grande. Menininha e colo que o tempo levou. Lembrei-me de um poema da Adélia Prado, O Tempo, pois se parece comigo: 

“Vinte anos mais vinte é o que eu tenho.

Nesse exato momento do dia,

Vinte de julho de mil novecentos e sessenta e seis,

O céu é bruma, está frio, estou feia,

Acabo de receber um beijo pelo correio.

Quarenta anos! Não quero faca nem queijo,

Quero a fome! 

Achei saboroso o que ela pediu. Fome! De que adianta um armário cheinho de queijo se falta o apetite para saboreá-los? De que adianta o self-service variado se o corpo não deseja nenhum prato? De que adianta o gourmet sofisticado se não há fome degustá-lo? O importante não é ter em abundância e sim o desejo de ter. É isso que dá sentido a vida. Que coloca a alma em funcionamento. Fome é o que eu quero. Muitos oram pedindo que não lhes falte comida. Eu oro pedindo que não me falte fome. Um desejo imenso de viver a vida como um dom ofertado por Deus. Quem deixa de ter fome, deixa de viver. Fica satisfeito. Acomodado. Inerte. “Bem-aventurado os que tem fome”, disse Jesus.

Fome é o combustível da esperança. Estar satisfeito é perigoso. Quando se tem a faca e o queijo, como escreveu a Adélia, corre-se o risco de desgostar da vida. Um estômago cheio é um estômago inválido. Orgulhoso. Mesmo que lhe ofereçam novas iguarias, ele as desprezará. Perdeu aquilo que dá sabor a vida: a fome. Quando se tem fome tudo vira festa. Tudo tem valor. Fica gostoso. Não é a toa que o poeta dizia que o melhor prato a ser degustado é angu com fome.

Jesus denunciou uma igreja que se dizia satisfeita. Está nas Escrituras Sagradas no livro do Apocalipse (Ap 3:14-22). O satisfeito não precisa de coisa alguma. Sabe tudo. Tem tudo. Pode tudo. Não lhe resta mais atrativos, nem espaços vazios, nem sonhos. Mas, por trás de sua satisfação encobre sua real situação: infeliz, pobre, cego e nu.

Nada mais triste do que um corpo sem desejo. Sem sonhos. Sem horizontes a alcançar. Não! Não quero estar satisfeito!  Palavras do poeta T.S.Eliot: “Salva-me, ó Deus, da dor do amor não satisfeito, e da dor muito maior do amor satisfeito”. Quero ser um homem como o Manuel Bandeira descreveu: “Digam que sou um homem sem orgulho. Um homem que aceita tudo”. Um homem que aceita tudo é um homem faminto.

O calendário me informa que vários anos da minha vida se foram. Não sei quantos tenho mais. Deus por sua bondade me ocultou. Peço-lhe a graça de viver muitos anos. Mas, para isso, é preciso que minha fome seja cada vez maior. Não quero satisfação ou tranquilidade. Prefiro e desejo a inquietação que me faz voar. Voar é viver! E se voa melhor com fome depois dos quarenta. Por isso o que eu quero é fome!

Luciano Rocha Guimarães


Anuncie com Jornal Noroeste
A caption for the above image.


Veja Também


smartphone

Acesse o melhor conteúdo jornalístico da região através do seu dispositivos, tablets, celulares e televisores.