A generic square placeholder image with rounded corners in a figure.


Um caminhão de amor


Por: Jacilene Cruz
Data: 26/05/2025
  • Compartilhar:


        Foi na universidade, na segunda metade dos anos 90 – minha particular Belle Époque[1] – que ouvi o amigo do Fernando Pessoa dizer que Todas as cartas de amor eram ridículas. Foi um banho de água fria. Eu, que pretendia ser uma amorosa escritora, alterei a rota da poética-prosa.

Sinto ainda que, apesar de Álvaro[2] – amigo de Pessoa – escrever categoricamente que ridículas eram suas memórias das cartas de amor, eu mantive o pé no freio e esqueci da escrita amorosa. Entre uma desculpa e outra, deixava sempre para depois.

Entretanto, um dia a casa cai. Hoje, para minha surpresa, caiu. Entre arranhões e esfoladuras, lá vou eu coberta de medo de ser ridícula. Respiro fundo e aproveito o ensejo para tirar de mim as marcas do colonialismo e brincar um pouco com Pessoa e os fernandos que ele espalhou por aí.

Convido, para essa prosaica poesia¸ um casal de amigos, Cícero e Cícera. Claro que são pseudônimos, afinal a privacidade tem que ser garantida. Com eles ao meu lado, eu e Pessoa podemos conversar de igual para igual.

Sem querer alimentar estereótipos, convém dizer que meus amigos são cearenses. Cearenses de carteirinha, pois fazem um arroz de leite com carne do sol frita deliciosos. Iguaria que só os verdadeiros conterrâneos de Patativa[3] sabem fazer.  

Vale ressaltar que essa crônica não é uma indireta para comer o divino prato novamente.

A história de amor da qual meus amigos xarás foram protagonistas, daria um belo filme. Imagino o Silvero Pereira e a Luiza Tomé nos papéis principais, embalados na maviosa voz de Amelinha... Mais um sucesso do Cine Holliúdy[4].

Peraê, deixa eu pegar de volta o fio da meada, acabei me evadindo em devaneios cinematográficos. Vamos à nossa história.

O Brasil é um país-continente. Dentro de tamanha extensão há grandiosa diversidade. É um país belo? É. E também desigual. Não se exasperem, vou contextualizar só esse pouquinho, é importante nos meandros do fato.

E o fato é que, ainda adolescente, minha amiga Cícera – pseudônimo em homenagem ao famoso Padin Padre Cícero – viu passar pelas ruas do distrito onde morava, um rapazote dirigindo um Corcel II, com parte do braço apoiado na janela. A mão esquerda ora alisava o bigode lápis, separando o indicador do polegar, ora juntava todos os dedos e se erguia acenando para conhecidos e desconhecidos. A mão direita se dividia entre as marchas e o volante. Mas isso ela nem percebeu, pois se encantou imediatamente.

É nesse meandro que agora vou contar, que a contextualização nos serve. Um dia, na fila esperando pelo caminhão-pipa para encher as vasilhas de água e levar para casa – talvez para cozinhar arroz de leite – lá estavam minha amiga e os irmãos mais novos, ansiosos para fazerem transbordar as talhas, filtros e outros recipientes que armazenavam água. De repente eis que lhe acena o rapazote, a essa altura, namorado. Envergonhada pela situação, devolveu-lhe timidamente o aceno.

À noite, horário do namoro no portão, Cícero – também em homenagem ao Padin – recordando que mais cedo viu a amada sob sol escaldante, esperando pela água, pergunta:

- Quer que eu mande um caminhão-pipa de água pra tua casa?

- Não!

Respondeu ela com o rosto vermelho escondido pela fraca iluminação noturna. Porém, a irmã que ouvia os sussurros dos namorados, revidou em alto e bom som:

- Ela quer sim!

E assim foi feito. O primeiro presente do então namorado – atual marido – à namorada – atual mulher – foi um caminhão-pipa cheio de água e transbordante de amor.

Se, depois de ler esta minha crônica, Álvaro e Pessoa pudessem reescrever seu poema, seria assim:

 

Cartas de amor são ridículas

No meu tempo

Eu só escrevi cartas de amor

Como as outras, de muitos outros

Ridículas.

Hoje, em outro tempo e espaço

As memórias de quem

Enviou um caminhão-pipa

Cheio d’água e repleto de amor

Não são nada ridículas!



[1] A “Belle Époque” ou Bela época em português, foi um período de paz, prosperidade e otimismo na Europa. Um período de cultura completa na que teve início em final da Guerra Franco-Prussiana em 1870 e durou até a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914. Disponível em: https://www.helenalandell.com.br/la-belle-epoque/

[2] Um dos principais heterônimos de poeta português Fernando Pessoa.

[3] Patativa do Assaré, grande poeta e repentista brasileiro, nasceu na pequena propriedade rural no município de Assaré no Sul do Ceará.

[4] Filme e série brasileira originária do estado do Ceará que traz as façanhas de Francisgleydisson.

Jacilene Cruz


Anuncie com Jornal Noroeste
A caption for the above image.


Veja Também


smartphone

Acesse o melhor conteúdo jornalístico da região através do seu dispositivos, tablets, celulares e televisores.