Pecadores
De tempos em tempos, aparece um filme que te pega desprevenido. Você entra na sala de cinema esperando uma coisa — nesse caso, um terror com vampiros — e sai com outra: o coração apertado, a cabeça cheia de imagens, e aquela sensação boa de ter assistido a algo especial. Os filmes pós temporada de Oscar não foram capazes de empolgar muita gente, porém, um lançamento da última semana tem chamado atenção por sua qualidade e por seu diferencial. Pecadores, novo trabalho do diretor Ryan Coogler, é exatamente isso. Um filme que mistura alma, sangue, música e memória de um jeito raro de se ver por aí. Sobre esse filme a Coluna Sétima Arte vai deixar você muito bem informado essa semana.
Vamos começar pelo enredo que é, aparentemente, simples. A história se passa no Mississippi de 1932, lugar onde o racismo não é só pano de fundo, mas estrutura. Dois irmãos, Smoke e Stack, voltam à cidade natal para transformar uma velha serraria em um clube de blues. Eles trazem o primo mais novo, Sammy, um guitarrista cheio de talento e conflitos internos. Só que o que começa como um drama histórico embebido em música e afeto, logo se revela muito mais complexo e bastante sombrio.
O ponto de partida do filme já é forte, mas o que realmente impressiona é a forma como Coogler constrói essa narrativa. O trabalho de câmera ao mudar as proporções da tela dependendo da emoção ou da lembrança que quer acionar é uma sutileza que justifica a ida ao cinema para ver esse filme. Nada está ali por acaso. Tudo pulsa com sentido. A experiência é quase sensorial, principalmente quando a música entra em cena, de maneira que o blues, aqui, não é só trilha: é espírito, é grito, é cura.
Quem rouba a cena é Michael B. Jordan, interpretando os dois irmãos com uma delicadeza absurda. Stack é impulsivo, elétrico. Smoke é mais racional, contido. Jordan entrega performances distintas, com gestos, olhares e silêncios que dizem muito mais que diálogos inteiros. Dá pra sentir o peso que esses personagens carregam, tanto nas costas quanto na alma.
Mas talvez o aspecto mais interessante de Pecadores seja a forma como o filme trata o elemento sobrenatural. Como já estava explicito nos trailers, sim, há vampiros — mas não como você imagina. Eles não são monstros de dentes pontudos sedentos por sangue. São metáforas. São feridas que nunca cicatrizaram. São o peso da culpa, do pecado, da herança escravocrata. E o mais bonito é que o filme não entrega isso de bandeja, tudo está subentendido, um convite para que o espectador tenha liberdade para interpretar cada cena.
Existe uma forma muito particular do diretor ao retratar os espaços, as pessoas, os afetos. O clube de blues, por exemplo, é quase um santuário. É ali que as dores viram canção, que os traumas encontram trégua, que a comunidade negra resiste com alegria, dança e improviso.
Claro, nem tudo é perfeito. O filme pode parecer irregular para quem espera uma narrativa mais tradicional. A entrada dos elementos fantásticos acontece de forma lenta e, para alguns, pode parecer deslocada. Mas, ao final, tudo faz sentido e o impacto emocional é enorme.
Vale uma menção honrosa à trilha sonora e ao papel simbólico que o blues ocupa. A referência a Robert Johnson, o lendário músico que teria feito um pacto com o diabo, dá uma camada a mais à discussão. Afinal, quantas vezes homens e mulheres negros não precisaram fazer pactos (com o diabo, com o sistema, com eles mesmos) para apenas sobreviver? E isso não apenas dos Estados Unidos da América, mas também em terras brasileiras, onde o racismo, infelizmente, ainda é estrutural.
Por que ver esse filme? Pecadores não é um filme fácil. É denso, cheio de entrelinhas, de silêncios barulhentos e cenas que incomodam. Mas é também um filme necessário e por isso deve ser visto. Em meio a tantas produções feitas para entreter e esquecer, Coogler entrega uma obra para lembrar. Um cinema que emociona sem ser piegas, que denuncia sem ser panfletário, que se ancora no passado para falar do presente.
No fim das contas, Pecadores é sobre dor. Mas também é sobre a beleza que pode surgir dela. Sobre como a arte, nesse caso, o blues, é capaz de transformar o que era ferida em força. E isso, meu amigo, não tem efeito especial que substitua. Boa sessão!