Parte 3 – “O diário do Chaves”, de Roberto Gómez Bolaños
Que alegria é escrever este texto para dar a conhecer detalhes pouco conhecidos da maravilhosa série “Chaves”, que estreou no México em 1972 e no Brasil em 24/08/1984, por meio do programa “TV Powww!”, do SBT, com o título inicial de “As aventuras de Chaves”. E o primeiro programa que o Brasil exibiu foi “O matador de lagartixas”. A dublagem, extraordinária e reconhecida como uma das melhores, ficou a cargo da equipe de dublagens MAGA, iniciais do gênio Marcelo Gastaldi, que deu as vozes de Chaves e Chapolin.
Mas, do que trata o livro “O diário do Chaves”, de Roberto Mario Gómez y Bolaños? Ele trata da vida do garoto do barril antes da vila e de quando já era vizinho de Seu Madruga, Dona Florinda e Bruxa do 71. Quanto ao início do livro, Bolaños cria uma bela história. Ele, comediante e escritor, estava em uma praça na Cidade do México e um garoto se ofereceu para engraxar o seu sapato. De início relutante, aceitou, e, após o garoto sair, feliz por ter recebido uma bela gorjeta, o escritor percebeu que o menino deixou um caderno e é deste e desta história (fictícias!) que Bolaños criará o enredo de seu primeiro livro, que se intitula “O diário do Chaves”, de 1995. A série, cujo último episódio ocorreu também em 1995, ganhou então um primoroso desfecho, no qual o escritor conta detalhes que até então ninguém sabia. Mas, quais detalhes são esses?
1º Chaves viveu com a sua mãe. O garoto, portanto, conheceu a mãe, mas não o pai. A genitora, que era paupérrima e vivia para trabalhar, deixava o filho na creche. Porém, com o tempo, devido ao cansaço, esquecia-se do garoto, a ponto de deixá-lo na creche em definitivo. A título de curiosidade, em espanhol Chaves se chamava “Chavo”, que em espanhol mexicano é uma forma de dizer “garoto”.
2º Chaves vai para o orfanato. Como era um menor abandonado, não podia morar na creche. Só que o tempo no orfanato foi por demais sofrido em razão dos maus-tratos da responsável, a senhora Martina. Cansado dessa vida, ele, mesmo sendo uma criança, pediu para sair, ao que é prontamente atendido.
3º Chaves vai para a rua. Nas ruas, devido às más influências de garotos igualmente desassistidos, fuma e até cheira uma substância tóxica. Ainda bem que essas drogas foram pontualmente usadas e o “Chavinho” não se viciou. Ainda dessa época, ele vê um colega morto e corre para fugir daquele lugar, até que chega na famosa vila que todo brasileiro se familiarizou.
4º O sanduíche de presunto. Logo após sair do orfanato, a fome era a sua companheira inseparável. Depois, morando no cortiço do Seu Barriga, também sentia fome, mas, por solidariedade dos vizinhos, como Seu Madruga (vide o episódio “O Desjejum do Chaves”, de 1976), ele eventualmente comia. Enfim, estando faminto nas ruas, um senhor lhe deu um sanduíche de presunto, ao que ele associou como a melhor coisa do mundo. A cena é tão bela que merece menção integral: “Caminhei por um montão de ruas que não conhecia. Não eram ruas muito bonitas, como as que aparecem nos filmes da televisão; mas também não eram muito feias, como as que também podemos ver na televisão. Mas o pior de tudo era a fome que eu sentia. Porque nada nesta vida é mais importante do que comer. Por isso, entrei no mercado, onde havia um bocado de coisas pra comer. O chato é que eu não tinha dinheiro pra comprar aquelas coisas. Então pensei em roubar algo, mas me lembrei que era pecado roubar as coisas, principalmente quando elas já têm dono. Foi por isso que pedi que me dessem o que fosse, e uma senhora me deu de presente duas cenouras. Mas o melhor ocorreu no dia seguinte, quando um senhor me deu um sanduíche de presunto. Não deve existir nada mais gostoso nesta vida!” (BOLAÑOS, 2021, p. 19).
5º A chegada na vila. Ao chegar à vila, logo conheceu uma velhinha que morava no número 8, daí ele dizer que era o “Chaves do Oito”. Porém, a senhora logo morreu, a casa foi ocupada por outra pessoa e o garoto teve de sair, dormindo cada dia em um lugar (na série dá a entender que o garoto de fato dormia no barril ou em um ou outro canto qualquer do cortiço). Mas, o “Oito” ainda tem outra conotação. Inicialmente, “Chaves” era exibido no Canal 8, Televisión Independiente de México (TIM), mas, quando essa emissora fundiu com a Telesistema, transformando-se na Televisa, o programa posteriormente não mais seria exibido no Canal 8, então, o escritor Bolaños criou a história da casa de número 8. O fato é que inicialmente o programa se chamava “El Chavo del Ocho” e depois ficou apenas “El Chavo”.
6º O barril. O barril não era a sua casa, mas, o seu refúgio, como diz o escritor: “Pouco depois apareceu outra pessoa pra ocupar a casa 8 e tive que sair de lá. Porém, como eu já tinha vários amigos na vizinhança, cada dia me convidavam pra dormir em uma casa diferente. E é assim até hoje, porque não é verdade que vivo no barril, como dizem uns e outros por aí. O que acontece é que me escondo no barril. E também quando não quero ver ninguém, ou quando tenho muita coisa pra pensar.” (BOLAÑOS, 2021, p. 24-25).
Expostas as curiosidades anteriores, é preciso dizer que há várias outras em “O diário do Chaves”, como acerca do carteiro Jaiminho, mas, deixarei para o leitor mais interessado descobri-las. O fato é que conhecer o universo de Roberto Gómez Bolaños é algo que segue me encantando após tantos anos. Prova disso é que tenho bonecos da turma, livros, sigo assistindo aos episódios e descobrindo curiosidades em canais do Youtube que estudam esse universo, e até fui à maior exposição do mundo sobre Chaves, chamada “Chaves A Exposição”, cujas fotos acompanham esta resenha.
Apesar do prazer que é acompanhar as histórias de Chaves, Quico e Chiquinha, não deixa de causar desconforto o seguinte fato: Chaves era órfão e passava fome; Quico era órfão de pai e, por mais mimado que fosse, morava em um lugar precário; e Chiquinha era órfã de mãe e o pai era um miserável. Dos três, é certo, o mais vulnerável era o Chaves, mas, todas as crianças tinham carências.
Sobre a fome, “O diário do Chaves” a aborda em detalhes, o que faz lembrar a vida da escritora Carolina Maria de Jesus que, em “Quarto de despejo”, narra o seu dia a dia de favelada em São Paulo, às margens do Tietê, próximo de onde hoje é o estádio da Portuguesa. Disse a escritora: “E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?” (JESUS, 2021, p. 45). E é isso o que dizia Chaves em diversas ocasiões. Dói ler essas linhas, pois muitos de nós, que temos onde dormir e o que comer com dignidade, muitas vezes não valorizamos esses bens que são essenciais.
E sobre o Chaves e sua miséria, preciso mencionar algo que mexeu comigo. Um dia escrevi uma resenha a respeito do seriado “Chaves” ter completado 39 anos de exibição no Brasil e recebi o seguinte comentário da amiga e bibliotecária Zineide Pereira: “Nunca passei necessidades, e, por mais regradas que pudessem ser nossas refeições, sempre tínhamos o necessário. Não sei me pôr no lugar de um pequeno desses que realmente tem que lutar por seu pão de cada refeição, quando poderia estar dentro de uma escola.” É verdade o que foi dito, pois, uma coisa é ver e rir da série, outra é se colocar no lugar do garoto de rua. Como dizia o professor Roberto da Silva, que foi professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e ele próprio viveu anos e anos nas ruas: “A vida do menino de rua é toda ela uma ilegalidade e todos os atos que ele pratica são possíveis de ser enquadrados como infração ao Código Penal. Para dormir, eu entrava em casas vazias; isto é invasão de domicílio. Para comer, eu pegava o pão e o leite que os padeiros entregavam de manhã ou frutas e verduras que os caminhões deixavam às portas de mercearias e de mercadinhos da região; isto é furto. Manter-me limpo e com roupas limpas ajudava-me a preservar o pouco de dignidade e de orgulho que havia em mim, mas quando eu “fazia um varal” em alguma casa, estava cometendo invasão de domicílio e furto. Até a própria presença de um menino nas ruas, sem ter o que fazer, já era classificada como vadiagem ou como perturbação da ordem pública.” (SILVA, 1998, p. 20). De tudo isso se extrai que não é possível literalmente se colocar no lugar de Chaves, mas, é possível refletir, querer ser uma pessoa melhor e sentir ternura por um personagem que era, nos termos de seu criador, “(...) a perfeita encarnação da ternura.” (BOLAÑOS, 2021, p. 11).
Escrever essas linhas é voltar à minha infância, é me lembrar dos meus pais e da minha irmã aguardando pela entrada do Chaves no SBT e me lembrar que durante os minutos de exibição daríamos boas risadas. Essa é uma das melhores e mais fortes recordações da minha infância. Obrigado, Chaves! Obrigado, Roberto Gómez Bolaños!
“Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,
Todos atentos olhando pra TV
Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,
Com uma historinha bem gostosa de se ver”
Referências
Carolina Maria de Jesus. Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 2021.
Felipe Figueira. Chaves: seriado completa 39 anos no Brasil. Disponível em: https://paranavai.portaldacidade.com/noticias/cidade/chaves-seriado-completa-39-anos-no-brasil-1117 Acesso em 01/06/2024.
Roberto da Silva. Os filhos do Governo: a formação da identidade criminosa em crianças órfãs e abandonadas. São Paulo: Editora Ática, 1998.
Roberto Gómez Bolaños. O diário do Chaves. Trad. de Fabiana Camargo. São Paulo: Pipoca & Nanquin, 2021.
____________________. Sem querer querendo: Memórias. Trad. de Monique D’Orazio. Contagem, MG: Estética Torta, 2021.
Fórum Chaves: https://www.forumchaves.com.br/
Canal Vila do Chaves: https://www.youtube.com/@CanalViladoChaves
Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.