O tortuoso caminho da democracia em uma sociedade monetizada
Por Renato Nunes Bittencourt
Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor da FACC-UFRJ
renatonunesbittencourt@gmail.com
Na era da erosão da pretensa solidez da democracia, percebe-se a completa dissociação entre liberalismo social e liberalismo econômico. Tal conexão entre ambos, se existe, é sempre volátil. Impera, em verdade, o infame mote “liberal na economia, conservador nos costumes”. Aliás, o adjetivo “conservador” é um eufemismo para “reacionário”, palavra muito mais acertada para explicitar o posicionamento sociopolítico desse tipo de pessoa tacanha e mesquinha avessa aos signos da pluralidade e da diversidade. Para o reacionário, é legítimo apenas aquilo que chancela os seus próprios valores. A liberdade do cidadão consiste em construir uma forma de vida individualista, autocentrada, solipsista. Não é necessário nenhum comprometimento social. Para o inferno a ordem do mundo, desde que eu viva, assim reza a cartilha dos liberalóides filisteus que evidenciam assim sua inerente aversão ao tecido social e seu senso republicano de coletividade. A sociedade é um monstro artificial, somente o “eu” existe, mas sequer sabemos o que é o “eu”. Em cima dessa grande ilusão constrói-se uma grande mitificação ideológica que fertiliza o campo da idiotia social regada pelo palavreado ultraliberal. O pensamento reacionário considera que a preservação do status quo familiar e a sacralidade da propriedade privada são as genuínas tipificações da liberdade do indivíduo. Nessa perspectiva asfixiante, sou livre para me armar e não para amar da maneira que eu considerar mais interessante para meu modo de ser. O único comportamento moralmente legítimo é o de empreender, enriquecer e agir de modo adequado aos padrões normativos.
O acordo social é facilmente desfeito quando a rentabilidade da plutocracia é afetada por uma agenda política que coloque em risco a ampliação da taxa de lucro do grande capital. Constatamos incontáveis gestos autoritários de governanças disruptivas em ações atentatórias contra o Estado Democrático de Direito e os grandes mandatários do mercado se felicitam por isso, pois aspiram empreender os seus negócios sobre uma base societária espoliada, desesperançada, desprotegida, precarizada e desarticulada, ou seja, a ditadura do poder financeiro que prospera com a morte da pessoa humana. Ampliação da margem de lucro sem qualquer tipo de resistência social. A truculência autoritária ama o poder ditatorial pois somente consegue exercer sua governabilidade através do silêncio e do andar cabisbaixo do cidadão, incapaz de clamar por seus direitos políticos e por sua dignidade perdida. Pessoas carentes são assassinadas por forças policiais em operações ostensivas de terror e a Bolsa de Valores não se afeta por isso. A biosfera é devastada em ações criminosas de latifundiários e de corporações industriais, mas a Bolsa de Valores não se afeta por isso. Basta uma palavra pronunciada por alguma liderança política proeminente que defenda qualquer medida de defesa dos interesses sociais para que a Bolsa de Valores sofra um baque e o mercado financeiro entre em pânico.
Vivemos assim subjugados ao grande fetichismo do capital, onde a sanha por lucratividade personaliza o mercado e desumaniza o próprio ser humano, computado como algo descartável e viável apenas quando é explorado no trabalho e consome os produtos necessários para a sua subsistência cada vez mais difícil. Se existe possibilidade de conciliação entre a dinâmica do mercado e a democracia tal associação revela-se cada vez mais distante. A rentabilidade econômica não hesita em solapar qualquer rito processual, qualquer legalidade institucional, em nome do lucro dos acionistas e seus sócios, interessados apenas em prosperar através da miséria do resto do mundo. Afinal, o poder financeiro permite que o seu detentor permaneça protegido em sua redoma enquanto uma grande massa humana se aventura diariamente por sua parca sobrevivência em uma realidade crua adubada pela exclusão, pelo medo e pela violência de estruturas sociais verticalizadas e refratárias ao progresso social.
Um programa político comprometido com o bem-estar humano não pode temer apresentar suas ideias para a sociedade. Palavras que são vituperadas pela orquestração reacionária do caos devem ser propagadas desavergonhadamente. O medo de desagradar fez de muitos progressistas genuínos figuras amedrontadas cada vez mais acuadas em um pequeno espaço de atuação. Uma governança substantivamente democrática deve promover o diálogo com os mais diversos atores sociais, inclusive os seus mais estridentes oponentes. No entanto, é imprescindível que se coloque a luta pelo bem comum como o ponto crucial de uma gestão democrática que esteja efetivamente conectada com os anseios do povo por qualidade de vida e esperança de um futuro a ser construído em uma esfera de dignidade e de garantias existenciais.