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O silêncio e a música


Por: Alessandra Batista de Godoi
Data: 29/07/2025
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A música me intriga e me cativa. Às vezes, penso que somos seres cantantes por natureza. Será? Te convido a prestar atenção, principalmente em pessoas que cantam com entusiasmo. Para isso, lembro de uma mulher sublime, com deficiência e problemas de saúde mental, que raramente usava a sua voz. Ela tinha o nome de rainha.

Nasceu em 1948 e, no fim da sua infância, teve paralisia infantil. A vacina foi disponibilizada no Brasil poucos anos depois. Por pouco, teria sido vacinada e, possivelmente, sua história seria diferente… conforme soube, ficou cerca de um ano acamada em decorrência da doença. Sobreviveu.

Anos mais tarde, foi paciente de tratamentos de saúde mental em hospitais psiquiátricos no modelo manicomial. Você sabe como eram esses tratamentos por volta da década de 1970? Vou citar algumas possibilidades: a terapia medicamentosa, a eletroconvulsoterapia, o choque cardiazólico, o isolamento em cubículos e em cela forte, o uso da camisa de força e do lençol de contenção. Desconheço como foi tratada e por quanto tempo, mas soube que, por intermédio de sua mãe, ela retornou à família. Sobreviveu.

Ocorreu que, aos poucos, ela parou de falar. Assim, na maior parte de sua vida, estava em silêncio. Ouvi sua voz em raros momentos, como quando cantava. Seus pais tinham rádio, discos, fitas cassetes e CDs, e ouviam músicas sempre que possível. A música era presente em sua vida.

A primeira vez que a ouvi já era uma pessoa idosa. Estava feliz, sentada no sofá, com as pernas cruzadas, os olhos fechados e uma das mãos levantada. Não foi possível compreender quais palavras entoava, mas tinham significado. Seu canto era pausado: às vezes interrompia para rir.

Outro momento foi em 2024, a última vez que estivemos juntas. Ela estava em sua cama, debilitada. Busquei alternativas para acalentá-la: carinho, cafuné e cântico. Ouvi dizer que a mãe dela fazia isso. Depois, convidei: “Cante!”. Ela aceitou. As pausas foram mais longas, o ritmo, mais lento. Revezamos: enquanto uma cantava, a outra ouvia. Assim, nós nos acalentamos e nos despedimos sem dizer palavras.

Nunca compreendi sua canção, mas foi a mais bonita que ouvi até hoje. Sorte a minha que pude apreciá-la e, assim, perceber algo de divino na música. Desejo que músicas sejam presentes em sua vida e que, sempre que possível, possa cantar com entusiasmo e ouvir com atenção. Se precisar, faça pausas.

Alessandra Batista de Godoi


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