O menino que estava “com o diabo no couro”
Quando estava terminando o Ensino Médio, decidi, “sem eira nem beira”, que faria um curso de graduação. Havia muitas distâncias para alcançar o meu objetivo, mas estava decidida, fazer o quê?! Algumas mudanças foram necessárias. Morar no sítio, sem automóvel, era um distanciamento. Mudei para a casa dos meus avós, na zona urbana. Estudava no período da manhã, mudei para o noturno. Comecei a trabalhar.
Escolhi um curso entre os possíveis (de territorialidade). Paguei pelo meu vestibular e fui aprovada numa universidade pública. Continuei. Quando estava terminando a graduação, decidi que faria mestrado… depois que faria doutorado… História comprida, cumprida e repleta de mudanças.
Fato é que a escolha pela licenciatura fez com que eu continuasse em instituições escolares e acadêmicas na maior parte da vida. Aprendendo e ensinando, num emaranhado relativamente ordenado.
Lembro da impressão que tive quando terminei a graduação e fui exercer, pela primeira vez, minha profissão. Havia tanta teoria a ser praticada, tantos papéis a serem desempenhados, preenchidos, corrigidos, guardados... Um redemoinho de medidas, de miudezas e grandezas.
Essa experiência ocorreu num contrato temporário de três meses, numa turma de 3ª série do Ensino Fundamental. Foi um período inesquecível, repleto de acontecimentos. Considerando que havia concluído a minha graduação recentemente, foi um misto de ânimo e receio.
A escola tinha um vigia que andava pelos corredores e que, quando julgava necessário ou era chamado, entrava nas salas. Ele fazia uma ronda e não sabíamos se era para nos proteger, vigiar ou punir. Aquilo dava-me a sensação de lugar de conflitos.
Antes de conhecer os estudantes, conversei com a coordenadora. Ela falou da turma e aconselhou-me a tirar o sorriso do rosto quando entrasse na sala de aula. Em outras palavras, assumiria o semblante parecido com o do vigia. Confesso que tentei seguir o conselho do “não-sorriso”, mas um ou outro escapou-me. Depois esqueci disso...
Aprendi sobre a rotina, obrigações, proibições, necessidades, metas, deveres, interesses, situações sobre/para/das relações vivenciadas naquele contexto, que eram novidades para mim.
Havia um menino cuja fama era de indisciplinado. Ele era bonito e inteligente. Um dia, estava briguento e mal-humorado, parecia estar pronto para enfrentar alguma batalha. Perguntei o que ele tinha, ao que me respondeu: “Estou com o diabo no couro hoje, professora!”. Isso era um fato muito importante e quis saber o que aconteceu.
Acredito que ele percebeu o meu interesse. Explicou que o seu pai havia agredido a sua mãe na noite anterior, falou de agressões, de facão, demonstrou que tentou intervir... Demonstrou sofrer com o fato de o pai ter saído de casa e com a sua presença. A violência contra a mulher fere muito(s).
Agora lembro: agosto foi o mês de conscientização pelo fim da violência contra a mulher, mas todos os dias podem ser. Ops, será que mudei de assunto sem querer? Pode ser que sim, mas quero demonstrar que, a qualquer momento, é possível conhecer (sobre) mulheres vítimas de violências. Você já reparou nisso?
É possível testemunhar. É possível sofrer. Pode ser numa sala de aula, numa igreja, no hospital, no seu trabalho, num parque, em ônibus, na sua casa, em elevadores… Pode ser sobre abusos e violências física, psicológica, moral, patrimonial e sexual, até feminicídio. Você pode, por exemplo, ler a notícia no jornal e saber que uma mulher, a sua colega do Ensino Médio, foi morta quando saía da igreja.
Haveria muitas histórias para exemplificar, infelizmente, mas vou parar aqui. Retomo a história sobre o menino que conheci no início da minha carreira. Após esse período em que fui sua professora, o encontrei poucas vezes. Quando me via, acenava com entusiasmo, assim como eu fazia para ele. Ele me ensinou que, muito além de tudo aquilo que citei no início, a instituição escolar e acadêmica é lugar de gente, de (des)encontros e de (re)conhecimentos.
Espero que aquelas violências não tenham se repetido e que ele tenha vivido uma infância boa e digna. Desejo que a mãe dele esteja viva e feliz, e sem a necessidade de conviver até que “a morte os separe” com alguém que cause medo e dor.
Esse texto foi escrito devagarinho, mas formou redemoinhos. Talvez seja esse um dos jeitos de explicar o que é trabalhar na Educação e o que é a própria vida. Quando possível, podemos aproveitar ventos fortes para sair do lugar, mudar e rodopiar.