“O Silêncio de Kazuki”, de André Kondo
“Ele conversa comigo lendo. Eu converso com ele escrevendo.”
André Kondo, 2024, p. 32
“O Silêncio de Kazuki”, de André Kondo, é um livro feito para o público infanto-juvenil, mas que tem o poder de se estender para todos os públicos. É uma obra que eu recomendaria para crianças, adolescentes e adultos, como já o fiz. A quem ler este texto, por favor, vá atrás do livro de André Kondo. Perdoe-me as redundâncias, é que recomendo a leitura desse livro.

Mas, do que trata a obra? Em linhas gerais, ela traz a história do autor com o seu pai, o senhor Kazuki Kondo, que nasceu na região da Manchúria (região Nordeste da China) no contexto da Segunda Guerra Mundial. E por que Kazuki nasceu na China sendo que os seus pais eram japoneses? Porque o avô de André Kondo era um soldado japonês destacado na China.
O fato é que com a derrota do Japão na Segunda Guerra a situação familiar recebeu reviravoltas, a ponto do avô, e, com ele, toda a família, ter vivido momentos difíceis. Kazuki, devido às debilidades do pai, em especial por causa do álcool, tornou-se o alicerce familiar, a ponto de ter abdicado de continuar os estudos para alimentar os seus. Tudo isso gerará marcas profundas em Kazuki, que ecoarão, por exemplo, em seu modo de lidar com a esposa e com os filhos. A introdução do livro, “Homem aos pedaços”, é lapidar sobre a personalidade de Kazuki:
“Meu pai nasceu na Manchúria, durante a Segunda Guerra Mundial. Como sei disso? Não foi porque ele me contou. Vi em seu documento de identidade de estrangeiro que ele, apesar de ter nacionalidade japonesa, nasceu na China. Por quase toda a vida fiquei sem saber disso. O documento diz agora que ele tem oitenta e um anos.
No saguão da ala de tratamento de câncer do Hospital Regional do Litoral Norte, a pergunta era para o cadastro:
- Seu pai é chines ou japonês?
O que e quem é meu pai?
Meu pai é feito de silêncios. Talvez por isso eu tenha nascido, para ser a sua voz. Ou provavelmente eu só queira acreditar nisso. Aceitei que ter um pai japonês era ter um pai que fala pouco e nunca abraça. Descobri depois que nem todos os pais japoneses são assim. Mas o meu era, então a gente só pensa e acredita naquilo que a gente vive. Lembro-me do pai do meu pai, o meu ditchan, em seu escritório (acho que era isso, apesar de eu nunca ter descoberto a sua profissão), sempre com a porta trancada. Não me lembro de sua voz. A lembrança que tenho é a de vê-lo abraçado por silentes flores. O cheiro dos crisântemos, flor imperial japonesa, velando o silêncio definitivo. Tal pai, tal filho? Mas, então, por que eu falo tanto?
Este relato é feito por peças de um quebra-cabeça, fragmentos que busco nas memórias arrancadas de meu pai. Quisera eu que fosse uma biografia, com datas, fatos e fotos. Um registro confiável de quem é meu pai. Uma forma de mantê-lo vivo dentro de um objeto que ele tanto ama. Seria justo que ele fosse enterrado dentro de um livro, porque são para os livros os seus silêncios mais bonitos. Os olhos correm sobre os ideogramas japoneses. Ali ele não precisa de bengala. Nas páginas ele não tem uma perna mais curta que a outra, então, não precisa mancar. Sua leitura é firme. Há o primeiro passo, a caminhada e o fim a cada obra. Histórias completas para um homem aos pedaços.” (KONDO, 2024, p. 11-12).

André e o pai autografando o livro
O livro, que possui uma linguagem leve, mas profunda e tocante, tem como fio condutor a relação entre pai e filho, mas, paralelamente, traz a vida familiar mais ampla, de André Kondo com a mãe, com a irmã, com os tios, com a esposa, com a cuidadora do pai. O livro, contudo, enfatiza o lado paterno do autor, por isso que a mãe pouco aparece, ainda que quando isso ocorre tem o poder de emocionar o leitor. A mãe de André, para a sua sorte, não foi uma “mãe morta”, nos termos do psicanalista André Green, mas, o amou e ama o filho em sua completude; ela o ama tanto que chegou a ir, sozinha, para o Japão, para ajudar o filho a estudar. O “Quarto pedaço”, intitulado “Mala”, é tocante.
O senhor Kazuki, um japonês silencioso, ao seu modo, também cuidou do filho com todas as forças que possuía e possui, mesmo quando elas pareciam não estar presentes. O “não estar presentes” recebe o nome de silêncio (ou Silêncio, em maiúsculo). Kazuki é um senhor silencioso que sentencia: “O que passou, passou.” (KONDO, 2024, p. 108).
Eu tenho a satisfação de dizer que conheço André Kondo, o premiado escritor de Taubaté, de Jundiaí, de São Paulo e do mundo. Ele já esteve em minha casa e eu já estive na sua; já viajamos juntos de Taubaté para São Paulo. Aliado a isso, posso dizer que tenho um orgulho dobrado, pois ele, que é um brilhante escritor, também é um brilhante editor, que já editou dois de meus livros pela sua editora, a Telucazu Edições: “sossélla sobra silfos” (poesia, 2023) e “A Casa” (romance, 2024). E o que essa referência pessoal significa? Ela significa que André, o escritor, vive de literatura, como autor e como editor, tendo recebido diversos prêmios nacionais e internacionais, como a prestigiosa Bolsa Gaimusho Kenschusei, do Governo do Japão, que foi motivo de grande orgulho para o pai.

Na imagem, o livro “No meio do mundo: as viagens de Teru e Kazu”, lançado pela Telucazu Edições, em 2023, o livro é fruto de suas viagens (ou peregrinações, como gosta de chamar) a mais de 60 países.
A respeito do André escritor, apenas uma curiosidade, que é dita de forma singela no livro: o seu pai não queria que ele fosse escritor, mas, administrador de empresas formado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ele tinha medo do filho passar fome. André não seguiu o sonho do pai, o que causou decepção ao genitor, mas, com o tempo, e mediante muito esforço (que, no percurso, levou o escritor até a viver em situação de rua por alguns meses, confirmando o vaticínio), a sua vida pela literatura começou a progredir. E progrediu tanto que ele ajudou o pai em mais de um tratamento médico, o que é contado com pureza ao longo das páginas, e ainda levou o genitor a uma viagem às Cataratas do Iguaçu, lugar que o senhor Kazuki viu em uma revista no navio que o trouxe ao Brasil.

André com Lilly Araújo, sua companheira, ambos escritores premiados várias vezes no tradicional Festival de Música e Poesia de Paranavaí (FEMUP). Foto: Kada
“O Silêncio de Kazuki” é um livro repleto de reviravoltas, e o senhor, silencioso, diz muito por meio de poucas palavras (com a devida liberdade, era mais ou menos isso o que fazia Nietzsche com os seus aforismos). E, como surpresa ao leitor deste texto, uma curiosidade: o senhor Kazuki é um ávido leitor de livros em japonês (eu próprio o vi lendo e contemplei sua biblioteca), e, quando adolescente, quis também ser escritor. Ao dizer isso de modo nenhum tiro a beleza das surpresas da obra, pois elas brotam a cada “pedaço” da obra. “Pedaço” é como o escritor intitula seus capítulos, como se fossem partes de seu corpo. E de fato são. Nesse sentido, eis o décimo segundo pedaço do livro, chamado “Casa”:
“Já se passaram uns três meses que, sem perceber, voltei para a minha antiga casa de infância, a casa do meu pai, que antes era a casa dele, da minha mãe, da minha irmã e minha também, mas que naquele momento parecia ser só do meu pai.
Aos poucos, as paredes começaram a falar comigo, trazendo antigas lembranças, nem todas tão boas, mas, em sua maioria, estampadas com sorrisos.
Retornos são difíceis em vários sentidos. Quando se volta a um lugar tão habitado por nossas memórias, esperamos encontrá-lo da forma como o deixamos. Mas, claro que o tempo não concorda com isso. É incômodo ver que as paredes desbotaram, que o teto tem algumas goteiras. Mas, principalmente, é ainda mais difícil encarar que o tempo passou e que você já não é mais o mesmo. Quem mudou afinal?
Minhas coisas ainda estão em São Paulo, essa cidade em que se vai para se tornar alguém na vida. Os vizinhos perguntam se voltei, após eu ter morado em tantas cidades de três continentes. É estranho, mas eu me pergunto se um dia eu saí desta casa.
Meu pai deve pensar que voltei porque preciso de um lugar para ficar. Mas a gente não fala sobre isso. Talvez meu pai saiba que voltei para cuidar dele. Talvez.
Já faz algum tempo que a Rose vem ajudar a cuidar da casa. Não se diz que se cuida do meu pai, porque ele tem certeza de que não precisa de ajuda.
- Amanhã não precisa voltar!
- Mas, Seu Kazuki, tenho que fazer almoço para o André.
- Ah! Verdade. Então pode vir.
E Rose vem e ajuda a todos nós.” (KONDO, 2024, p. 45-46).

Seu Kazuki em sua biblioteca. Nas mãos, “O Silêncio de Kazuki”
Eis um livro que traz à cena não só as memórias do autor, mas a de todos nós que nos aproximamos de suas palavras, tão bem escolhidas para expressar temas tão difíceis. E, conforme dito, tudo é feito para o público infanto-juvenil, mas nós, adultos, pessoas de todas as idades, somos levados pelas histórias do mestre da escrita que é André Kondo.
Sobre o autor:
André Kondo é autor de 17 obras premiadas, recebendo distinções como o Selo Cátedra
UNESCO de Leitura PUC-RIO, o Selo Altamente Recomendável da FNLIJ, vários prêmios da UBE-RJ, o Prêmio por Histórico de Realização em Literatura do Governo de São Paulo e o Prêmio 100 Anos da Semana de Arte Moderna, do Governo Federal. Foi finalista de importantes prêmios, como o Jabuti e o Barco a Vapor. Seu livro "Contos do Sol Poente" foi traduzido para o japonês, com o título Okaerinasai. Filho de imigrantes japoneses, recebeu, em 2020, a prestigiosa Bolsa Gaimusho Kenshusei, do Governo do Japão, onde morou, assim como na Austrália, sendo pós-graduado pela University of Sydney. Viajou por mais de 60 países em busca de inspiração para a sua escrita. Vive de literatura.
André Kondo. O Silêncio de Kazuki. Jundiaí: Telucazu Edições, 2024.