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“A psicopatologia da vida cotidiana”, de Sigmund Freud


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 11/07/2024
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Sigmund Freud é amplamente conhecido por ser o pai da psicanálise, ciência que investiga os pormenores do inconsciente e como que ele se manifesta no dia a dia do ser humano. Dentre as grandes obras iniciais de Freud estão “A interpretação dos sonhos” e “A psicopatologia da vida cotidiana”.

Sigmund Freud (1856-1939) | Foto: Divulgação

Eu me aproximei de Freud há cerca de 20 anos e desde então, apesar de todos os meus compromissos profissionais nas áreas que me formei, o pai da psicanálise ocupa um lugar de destaque, de modo que tenho as suas obras completas, inclusive livro ou outro com mais de uma tradução. E por quê esse apreço? Porque, com Freud, posso compreender melhor o ser humano, desde os seus atos públicos grandiosos até os seus menores, que alguém pode considerar mero deslize. Entre os deslizes estão os abaixo elencados, que são analisados em “A psicopatologia da vida cotidiana”, constituindo o seu sumário:

1.   Esquecimento de nomes próprios.

2.   Esquecimento de palavras estrangeiras.

3.   Esquecimento de nomes e sequências de palavras.

4.   Lembranças da infância e lembranças encobridoras.

5.   Lapsos verbais.

6.   Lapsos de leitura e de escrita.

7.   Esquecimento de impressões e intenções.

8.   Atos descuidados.

9.   Atos sintomáticos e atos casuais.

10.               Erros.

11.               Atos falhos combinados.

12.               Determinismo, crença no acaso e superstição.

Como se vê, a obra de Freud cobrirá uma série de casos comuns ao dia a dia, daí o título “da vida cotidiana”. Entretanto, o psicanalista apenas vez por outra fará ou apresentará (por meio do trabalho de um amigo/conhecido) uma análise detalhada da cena narrada. Nos termos do próprio autor: “Este trabalho é de caráter popular; pretende apenas, mediante um acúmulo de exemplos, aplainar o caminho para a necessária suposição de processos psíquicos inconscientes mas atuantes, evitando todas as considerações teóricas sobre a natureza desse inconsciente.” (FREUD, 2022, p. 366).

         E de onde ou de quem são tirados todos os atos falhos do livro? Em boa medida, do próprio Freud, mas, também, de seus pacientes, de seus amigos, de pacientes de seus amigos, de notícias de jornal e de romances da literatura universal. Tudo é apresentado de modo tão simples que as mais de trezentas páginas são rapidamente lidas. No capítulo “Atos descuidados” é possível encontrar dois exemplos que dão o teor da escrita e do livro:

“Em vez de muitos exemplos, relatarei em detalhes apenas um, tirado de minha experiência médica. Uma jovem mulher quebrou a perna num acidente de carruagem, de modo que ficou de cama por semanas; nisso chamou a atenção a ausência de manifestações de dor e a tranquilidade com que ela suportou seu infortúnio. Esse acidente deu início a uma longa e severa neurose, da qual enfim se recuperou mediante a psicanálise. No tratamento eu soube das circunstâncias do acidente, assim como de certos eventos que o haviam precedido. A jovem mulher se achava, com seu marido bastante ciumento, na propriedade rural de uma irmã casada, em companhia de seus vários outros irmãos e irmãs e seus respectivos cônjuges. Uma noite, nesse círculo íntimo, ela pôde exibir uma de suas prendas: dançou perfeitamente o cancã, sob grande aplauso dos parentes, mas para insatisfação do marido, que depois lhe sussurrou que ela havia novamente se comportado como uma meretriz. A frase teve efeito; não vamos inquirir se foi exatamente por causa da dança. Ela dormiu mal, e na manhã seguinte desejou passear de coche. Mas ela própria escolheu os cavalos; recusou uma parelha e exigiu outra. A irmã mais nova queria que seu bebê também fosse, juntamente com a babá; ela se opôs a isso de forma enérgica. Durante o passeio ela se mostrou nervosa, advertiu o cocheiro de que os cavalos estavam ficando assustados, e, quando os inquietos animais realmente causaram dificuldade num instante, ela pulou fora, apavorada, e quebrou a perna, enquanto os que permaneceram no veículo nada sofreram. Após saber desses pormenores, é difícil contestar que o acidente foi, na realidade, algo preparado; mas tampouco deixemos de admirar a habilidade que fez o acaso ministrar um castigo tão adequado à culpa. Para ela, dançar o cancã tornou-se impossível por um bom tempo.

Quanto a minhas próprias autolesões, pouco teria a relatar em tempos tranquilos; mas em condições extraordinárias não me vejo incapaz delas. Quando um dos membros de minha família se queixa de haver mordido a língua, machucado o dedo etc., em vez da esperada compaixão de minha parte ouve esta pergunta: “Para que você fez isso?”. Mas eu próprio apertei meu polegar de maneira bastante dolorosa, depois que um jovem paciente falou, numa sessão, do propósito (que não devia ser levado a sério, naturalmente) de se casar com minha filha mais velha, quando eu sabia que naquele momento ela se achava num sanatório, em sério perigo de vida.” (FREUD, 2022, p. 245-246).

         No entanto, apesar da beleza do livro e dele ajudar o ser humano a se compreender melhor, grande meta da história da humanidade, o leitor é remexido profundamente em seu psiquismo. Quanto a isso, digo por mim mesmo: comecei a me autoanalisar logo nas primeiras páginas, lembrando-me de esquecimentos de nomes próprios, lembranças da infância, atos descuidados, erros, etc. O resultado? Minha esposa disse para eu parar. Contudo, é impossível, ou quase impossível interromper o fluxo da autoanálise, até porque “A interpretação dos sonhos”, livro já mencionado, é uma grande autoanálise de Freud. O resultado (para repetir a pergunta)? É que a psicanálise é um instrumento preocupado com a verdade, por mais dolorosa que ela possa se revelar. Segundo Freud: “Pode nos surpreender, de modo geral, que o impulso de dizer a verdade seja tão mais forte do que habitualmente se pensa. É talvez uma consequência do meu trabalho com a psicanálise o fato de eu quase não conseguir mais mentir. Sempre que busco distorcer algo, cometo um erro ou algum outro ato falho que denuncia minha insinceridade” (FREUD, 2022, p. 301).

         É difícil contar a quantidade de exemplos trazidos por Freud ao longo da obra, mas, eles cobrem boa parte da vida do ser humano, indo desde esquecimento de chaves e déjà-vu até “sutilezas” conjugais. Sutilezas entre aspas, afinal, o que se aprende com Freud é que tudo tem um motivo (como o psicanalista expressa claramente com a interpretação dos números, o que chega a assustar). Acerca da dificuldade de certas situações, eis uma explicação metodológica: “O sonho que se mostra refratário à tentativa de resolvê-lo no dia seguinte com frequência permite que uma semana ou um mês depois seja extraído seu segredo, quando uma mudança real ocorrida nesse meio-tempo tiver reduzido os valores psíquicos conflitantes. O mesmo vale para a resolução dos atos falhos e sintomáticos; o exemplo de lapso de leitura “Num barril pela Europa” me deu a oportunidade de mostrar como um sintoma inicialmente insolúvel se torna acessível à análise quando relaxou o interesse real nos pensamentos reprimidos.” (FREUD, 2022, p. 363).

         Por fim, é interessante perceber que “A psicopatologia da vida cotidiana”, publicada em 1901, parece que foi escrita ontem, pois dá conta de captar aspectos essenciais do ser humano, afinal, o inconsciente é atemporal.

Sigmund Freud. Obras completas, volume 5: Psicopatologia da vida cotidiana e Sobre os sonhos (1901). Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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