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“O cão e o violão”, de Lúcio Humberto Saretta


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 17/11/2020
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Lúcio Humberto Saretta. O cão e o violão. São Paulo: Editora Gataria, 2020.

 

O livro de poemas “O cão e o violão”, de Lúcio Humberto Saretta, publicado pela Editora Gataria (2020), tem um interessante estilo: a maior parte dos poemas é composto de estrofes com quatro versos. Há também dois poemas em língua estrangeira, no caso, em italiano e inglês. Além dessas características mais formais, o livro abriga temas caros à literatura como um todo: infância, amor, melancolia, injustiças sociais e boemia. Os poemas se valem de rimas constantes que, antes de seres comuns, banais, são bem construídas, saindo da pobreza das rimas óbvias. Tudo isso faz com que a leitura, além de prazerosa, acrescente linguagem e estilo ao leitor. Apenas um comentário de teor biográfico: o livro aqui em resenha é o primeiro de poesia do escritor gaúcho, que tem uma forte relação com crônicas.

À parte as considerações anteriores, na obra há um interessante poema chamado “Ninguém”. Vou reproduzi-lo na íntegra e depois comentar o porquê ele me marcou.

 

Ninguém

 

Houve um tempo em que eu

Ansiava em ser alguém

Como o cara comum

Respeitado por outrem

 

Além disso eu queria

Ser conhecido como quem

Foi artista e ganhou

Grana, fama e também

 

O prestígio reservado

Pela alta sociedade

Ao distinto advogado

Que enobrece a cidade

 

Eventualmente eu consegui

Ser uma espécie de escritor

Do tipo que nunca sorri

Inteligente e sedutor

 

Graças a um mal-entendido

Por um instante eu fui o tal

E até mesmo fui motivo

De reportagem no jornal

 

Subitamente eu andava

Pelas esquinas deste mundo

Com a cabeça levantada

Sem me sentir um vagabundo

Entretanto essa quimera

Não rendeu nenhum vintém

E quando vi de novo eu era

Do ostracismo um refém

 

Caminhando pelas ruas

Sendo alvo do desdém

E o meu crime foi um dia

Ter sonhado em ser alguém

 

Hoje carrego no peito

Um sentimento que faz bem

Pois se penso a respeito

Prefiro mesmo... ser ninguém (SARETTA, 2020, p. 25-26).

 

Assim como o personagem do poema, também eu, enquanto escritor, já flertei com algum reconhecimento, recebendo matérias em jornais acerca dos meus trabalhos. Diante da repercussão positiva, pensei: “agora é o momento certo de gravar vídeos com os meus poemas e colocar meus livros nas bancas da minha cidade”. Porém, ledo engano: passaram-se os anos e os meus livros só receberam poeira nas prateleiras. Resultado? Apenas um livro vendido, de vários. Eu posso nesse momento brincar junto a Lúcio Saretta, trazendo o seu poema “Estranho sucesso”: 

 

Ó, estranho sucesso! Onde andarás que nunca te vi

Em que esquina da cidade tu te escondes

Com que roupa tu te vestes nesses bondes

Onde vaga a multidão que não sorri? (SARETTA, 2020, p. 59).

 

Retornando ao poema trazido em sua integralidade, a minha profissão, professor, e o meu prazer, escrever, são ofícios pouco valorizados na sociedade se comparados aos trabalhos do advogado, do engenheiro e do médico. Para a minha sorte, ou azar, também sou formado em Direito, mas não exerço porque tenho regime de dedicação exclusiva no Instituto Federal do Paraná (IFPR). Algumas pessoas não se conformam e dizem que sou inteligente demais para ser professor, sendo que eu poderia “ganhar dinheiro” sendo advogado, juiz ou promotor. Por causa desse tipo de situação, escrevi um diálogo chamado “Conversas comuns”:

 

- Você é formado em Direito, e agora?

- E agora o que?

- O que você vai fazer com o Direito?

- Preciso fazer algo?

- Claro, você estudou para quê?

- Porque eu gosto.

- Se eu fosse você eu abandonava as aulas e fazia concurso na área do Direito.

- Mas eu amo o que faço.

- Mas você é tão inteligente e quer continuar sendo professor?

- Professores são burros?

- Ah, cada um faz o que quer, só estou dando um palpite.

 

O ponto que vale a pena retornar é que “O cão e o violão” traz em si vários pensamentos valiosos, pois, conforme dito, toca em temas caros à literatura, como a melancolia. E é em torno da melancolia que o poeta traz uma bela imagem do cão, sendo esta imagem representada de modo igualmente belo na capa do livro. A capa contém: um cão, um violão, uma mesa e a mão do poeta escrevendo algum verso, e tudo isso em meio ao verde de um sítio ou mata. A felicidade do amante da literatura chega a ser um tanto ingênua, pois, se ele fala de amor, de infância, de injustiças sociais, é porque ele, poeta, ainda que às vezes triste e até resignado, segue na labuta da vida e luta contra resignações. A essa luta também é possível chamar de amor.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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