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Nosferatu


Por: Odailson Volpe de Abreu
Data: 09/01/2025
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Grande semana para o cinema brasileiro. Após uma linda trajetória nos festivais internacionais e uma bilheteria estrondosa no Brasil, onde o filme ainda está em exibição, o longa de Walter Salles, Ainda Estou Aqui, foi coroado no domingo com o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Drama para Fernanda Torres. Muita gente ficou feliz, porém, a maioria das pessoas acredita que o prêmio foi apenas mais um reconhecimento para uma atriz que é amada por todo o povo brasileiro devido à sua carreira em sitcoms de sucesso, que a fizeram, ao longo de décadas, tornar-se quase alguém da família de cada brasileiro. Porém, simbolicamente, esse prêmio vai muito além: ele representa o renascimento do cinema brasileiro, que foi torturado, atacado e  abandondo para morrer à míngua durante os anos de 2018 a 2022, uma época de desgoverno e desrespeito à cultura. Ironicamente, tal qual o povo brasileiro, “que não desiste nunca”, o cinema brasileiro mostrou toda sua resiliência e ressurgiu mais forte, colhendo os louros da vitória. 

Melhor ainda, recebendo reconhecimento internacional por uma obra que enfia sem dó o dedo na ferida aberta da ditadura, que ainda insiste em não cicatrizar e que volta a doer de tempos em tempos no país. Do mais, a primeira semana do ano de 2025 ainda contou com a excelente notícia de que O Auto da Compadecida 2, sequência de um grande sucesso do cinema nacional lançado em 2000, ultrapassou a marca de dois milhões de espectadores. Agora, a cada um de nós resta aguardar a tão esperada indicação ao Oscar, mas, caso ela não venha, nada e ninguém será capaz de tirar a sensação de orgulho pela cultura que já foi despertada no coração da grande maioria dos brasileiros. Como diria Fernanda Torres: “A vida presta!”

 Agora, vamos falar da bola da vez no cinema, a estreia do remake de Nosferatu. A primeira coisa que indico é: quer ir ver esse filme no cinema, então prepare-se antes, tirando uma horinha para assistir ao filme original, de 1922. Trata-se de um filme alemão de terror expressionista dirigido por F. W. Murnau. O filme é uma adaptação não autorizada do romance Drácula de Bram Stoker e, por isso, os nomes dos personagens e alguns elementos da história foram alterados. Nosferatu teve suas cópias judicialmente destruídas, já que não foi autorizado pela família do autor original, que buscava proteger os direitos autorais. Assim, pouquíssimas cópias foram restauradas, o que deu ao filme um ar quase mítico de algo proibido, frequentemente citado como um dos primeiros e mais influentes filmes de vampiro na história do cinema e precursor dos efeitos especiais. Atualmente, ele está disponível na íntegra no YouTube, e você pode vê-lo como forma de preparar-se melhor para apreciar a obra que está em cartaz no cinema.

 Agora, vamos dar atenção ao remake! No novo Nosferatu o diretor Robert Eggers, já reconhecido por sua mestria em evocar o horror psicológico e atmosférico em obras como A Bruxa, de 2015, e O Farol, lançado em 2019, apresenta uma nova e reverberante versão do filme original de 1922 que, sem dúvida, marca um capítulo distinto na história deste ícone do terror. O filme é uma audaciosa revisita ao clássico que não se contenta em apenas recontar uma história conhecida; ele a reinventa, sem desrespeitá-la, trazendo à tona uma estética grandiosa e uma profundidade interpretativa que desafia o espectador a mergulhar nas camadas mais obscuras da condição humana.

 A trama começa com a promessa de uma nova vida para Ellen Hutter, interpretada por Lily-Rose Depp, e seu marido Thomas, papel de Nicholas Hoult, cuja jornada contratual até a sombria Transilvânia se desenrola como um fio narrativo que, ao ser puxado, revela uma trama de medo e desolação. A direção de Eggers opta por um terror mais contemplativo, distanciando-se do frenesi sangrento que permeia muitas produções da atualidade. Este Nosferatu é uma ode à construção gradual da tensão, onde cada cena é meticulosamente montada para incitar um desconforto palpável, sem necessidade de espetáculos gráficos excessivos.

A figura do Conde Orlok, interpretada por Bill Skarsgård, é um tributo ao grotesco e ao fascinante. Skarsgård empresta ao personagem uma voz gutural e uma presença física que, embora às vezes flertem com o ridículo, ancoram-se firmemente no território do aterrorizante. O Conde é retratado como uma criatura de apetites vorazes, não apenas pela vida, mas também pelo simbolismo do que significa ser humano, ser nobre, ser superior, refletindo uma luta interna entre o patético e o poderoso, o faminto e o fétido. A interpretação de Lily-Rose Depp é digna de nota, transformando Ellen de uma vítima aparentemente passiva em uma personagem multifacetada, cuja luta interna e evolução são capturadas em uma performance que é tanto física quanto emocional. A dinâmica entre Ellen e sua amiga Anna Harding, vivida por Emma Corrin, adiciona uma camada de complexidade ao filme, sugerindo uma relação que transcende sob a superfície do enredo principal e oferece uma leitura alternativa dos desejos e angústias que assombram Ellen.

A cenografia e o design de produção de Craig Lathrop são um espetáculo à parte, com ambientes que parecem ter sido esculpidos para encapsular o horror e a beleza gótica. As velas tremeluzentes, as cortinas que ondulam como seres vivos e as esculturas que parecem observar e julgar os personagens, tudo isso compõe uma experiência visual que é tanto uma homenagem ao gênero quanto uma extensão de sua narrativa. A trilha sonora de Robin Carolan é um elemento que se entrelaça perfeitamente com a estética do filme. Carolan utiliza uma sinergia de metais, sopros e cordas para criar uma partitura que não apenas acompanha, mas intensifica a sensação de medo e inevitabilidade que percorre a história. A música é um personagem onipresente, poderoso, que sussurra a iminência do terror e a profundidade das transformações internas dos personagens.

Um dos pontos altos do filme é a forma como Eggers utiliza o terror para refletir ansiedades contemporâneas. Se no expressionismo de Murnau os medos eram mais ligados à epidemia e ao desconhecido, na releitura de Eggers, o horror se mescla com a culpa moderna, a alienação social e a busca de identidade de gênero, a avidez pela riqueza. O diretor consegue, com uma sutileza que beira a magia, fazer com que o antigo se torne um espelho do presente, sem que a narrativa perca sua essência gótica. É como se a luz da modernidade houvesse cegado os homens para o mal que persiste desde tempos imemoriais. A participação de William Dafoe como Professor Albin von Franz é um aceno do diretor para os amantes de cinema e literatura gótica. Dafoe, com sua habilidade ímpar para personagens excêntricos, infunde sabedoria e uma pitada de fáscinio, trazendo à tona discussões sobre alquimia e crenças que enriquecem o contexto histórico e filosófico da trama, em meio a uma conjuntura cética, tecnicista e lógica de meados do século XIX.

A direção de fotografia de Jarin Blaschke é uma peça-chave para a eficácia do filme. As escolhas de iluminação e composição visual evocam tanto a estética expressionista original quanto introduzem inovações que só o cinema contemporâneo permite. As cenas externas, sobretudo as que se remetem a Transilvânia são lindas, dignas de emoldurar. As sombras são personagens em si mesmas, dançando e se contorcendo, enquanto a luz revela detalhes que preferiríamos manter ocultos. O design de som, embora em alguns momentos a voz do Conde Orlok possa parecer excessiva, serve para destacar a natureza ameaçadora do vampiro. É um lembrete constante de sua influência corruptora e de sua presença inescapável, reforçando a sensação de claustrofobia e inevitabilidade.

Nosferatu de Robert Eggers é um filme que se posiciona no limiar entre o clássico e o inovador, o sombrio e o iluminado, o terror e a beleza. É um convite para que o público não apenas assista, mas participe de uma experiência que questiona a natureza do mal e a fragilidade da condição humana. Ao fim, o que fica é a sensação de que Eggers não apenas nos ofereceu um filme, mas uma reflexão profunda disfarçada de conto de terror, onde cada imagem e cada som são carregados de significado e ressonância.

Por que ver esse filme? Porque o novo Nosferatu não é apenas um filme para ser visto; é uma experiência para ser sentida e digerida, um lembrete de que o cinema de horror pode ser tão sofisticado e filosoficamente rico quanto qualquer outra forma de arte. Com sua habilidade de mesclar o teatral e o cinematográfico, Eggers entrega um filme que é, ao mesmo tempo, uma reverência ao passado e uma provocação ao presente, um olhar para os medos que nos definem e um espelho para as paixões que nos consomem. Essa é uma obra que se afirma como cult antes mesmo de se tornar um clássico, e que promete permanecer na mente dos espectadores muito além dos créditos finais. Boa sessão!

Odailson Volpe de Abreu


Anuncie com Jornal Noroeste
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