José Amarante, entre a jardinagem e a poesia
Em janeiro de 2023 tive a oportunidade de conhecer Natal, Rio Grande do Norte, e uma das grandes experiências naquele estado foi a de conhecer a Casa do Cordel e de conversar com dois brilhantes cordelistas, Chico de Iaiá e Abaeté do Cordel. Dessa viagem dois textos foram escritos, que ocuparam páginas inteiras do Jornal Noroeste. Uma das premissas de Abaeté do Cordel é a de que todo ser humano é poeta, e que a vida é a própria poesia.
Ao chegar à minha cidade, Maringá, Paraná, compartilhei algumas histórias com um amigo, irmão José Amarante, por saber que ele é nordestino, de Pernambuco, e que gosta de poesia. Para a minha surpresa, ele disse que no passado foi repentista e que hoje, de vez em quando, também faz poesias. Pedi para ele falar um de seus poemas e a resposta veio no ato. Diante disso, pedi para ele me contar mais da sua história.
Irmão Amarante nasceu em Pernambuco, na cidade de Tupanatinga, em 03/06/1969, e na mocidade morou na Bahia, em São Paulo, até vir para o Paraná. Ele chegou a viver, em parte, em razão de sua poesia, recebendo trocados para criar repentes na capital paulista. A poesia, como ele diz, lhe saía naturalmente, e hoje só não lhe sai tanto porque perdeu o hábito. Ele afirma que é uma alegria quando encontra um bom repentista, pois, a partir das palavras do companheiro, a criação torna-se fácil, espontânea.
Eu, que escrevo há 22 anos, sei o quão difícil é escrever, e imaginar coisas de modo espontâneo é só ocasionalmente. Mas, no caso do meu amigo, e de outros cordelistas que conheci, por mais que haja todo cuidado com a língua, a espontaneidade é a regra.
Segundo o meu amigo, quando ele resolve criar uma poesia, as palavras aparecem em forma de um mural. Fiquei admirado e pedi para que ele me explicasse melhor. Ele me disse que quando lhe vem o desejo de criar uma poesia, ele olha para a natureza, pois ele é jardineiro profissional, e, de uma árvore, de um campo, de um passarinho, tudo isso ele chama de mural, a poesia lhe vem naturalmente, tão naturalmente quanto o canto de um canário da terra.
Eu já tive a oportunidade de ver grandes murais, como os de Kobra, em São Paulo, e o da cidade de Dresden, na Alemanha. Para o de Dresden, eu próprio escrevi um poema, presente no meu livro “Versos de Varsóvia”, e foi interessante como que o poema nasceu com naturalidade. A ideia é a de que uma arte chama por outra arte, tal qual o meu amigo me disse. Algo semelhante se deu quando fui à Casa do Cordel, quando voltei para o hotel, escrevi dois longos textos em uma só noite.
Há princípios pedagógicos que não são mero populismo, como o de valorizar os saberes trazidos de casa. Isso não significa que o professor pode deixar de preparar aulas, pelo contrário, as suas aulas podem ficar incrivelmente mais ricas e participativas e a ciência se voltar aos fatos do cotidiano, em uma complexa relação de trocas. Eu já tive alunos cujos pais eram artistas, e tive a satisfação de trazer a sua arte, no caso, esculturas, para o meu trabalho, e lhe organizei uma exposição. A possibilidade de trocas em matéria de conhecimento é infinita.
Por meio de uma simples conversa pude ganhar em conhecimento e sentir que a poesia não é algo abstrato, isolada em poemas parnasianos, mas á manifesta em todos os lugares, formais e informais. Para que o leitor sinta o que eu senti, compartilharei alguns poemas do meu amigo.
Antes, porém, de publicar as poesias, preciso tecer duas considerações: 1ª Irmão Amarante e eu nos conhecemos em um dia qualquer, há dois anos, por volta das 21 horas, pois é nesse horário que ele sai para passear com a sua cachorrinha, Mary Jane. Ele, que mora a 200 metros da minha casa, me reconheceu da igreja, me saudou e se pôs a conversar, e assim ocorre desde então. 2ª Ele nunca publicou nada, pois, por mais que possua um vocabulário impressionante e uma fala bem articulada, se considera alguém de “pouco estudo”, um “não conhecedor da gramática”, alguém que não sabe “colocar ponto, vírgula, essas coisas, exclamação e outros mais”, segundo as suas palavras.
1ª
Eu saí para passear
Já tinha findado o dia
Encontrei um grande amigo
Parece que ele sabia
Que na resta da minha sombra
Acompanhava a poesia
Contando eu também dizia
Que um tempo eu fui poeta
Por grande necessidade
Eu virei quase um profeta
Lá nas ruas de São Paulo
Andando de bicicleta
O sangue corre na veia
A poesia na mente
Ela transmite alegria
E deixa a gente contente
E de acordo a doença
Cura até os doentes
Agora eu viro um poeta
E vou ter que decidir
Vou deixar a jardinagem
E a poesia seguir
Pois achei um professor
Na linguagem deu valor
E o texto vai redigir
Para passar para o leitor
Ele é o produtor
De tudo o que vai surgir
2ª
Eu e Mary Jane juntos
Um na cadeira
Outro no chão
A língua quase enrolou
Saindo fora do padrão
Essa cachorrinha linda
Mora no meu coração
3ª
Estou aqui carpindo mato
E levantando a poeira
Ouvindo uma algazarra
Da cigarra pantaneira
Passarinho me traz notícia
Do irmão Noel Moreira
Ó meu Deus, nesse momento
Meu pensamento é no céu
Pedindo a misericórdia
Saúde ao irmão Noel
Para juntos nós trabalharmos
Na obra que vem do céu
Estou caçando um jeitinho aqui
Mas não estou encontrando
É sinal que estou cansado
E a mente está falhando
Eu vou tomar um banho
Que assim fico descansando
E à noite se Deus quiser
Com os irmãos estou congregando
4ª
Guarde bem esses versos
Que foi um dos preferidos
Parece uma criança
A voz do recém-nascido
E vou admirar
Pois começa a falar
Com o coração transcorrido
5ª
Vi uma flor na floresta
Estava acenando pra mim
Eu andei o dia inteiro, confesso
Não achei ruim
Quando eu cheguei perto dela
Era a flor do amendoim
6ª
Estou gravando o meu amigo
Bueno Manuel Galvão
Eu em cima de uma pedra
E ele sentado no chão
É que eu fui mais fortinho
E fiz a vez e passarinho
Voando igual gavião
Ele apertou a mão
Pra na árvore se escorar
Estava pedindo uma rede
Mas não pôde se deitar
É que esqueceu a corda
Para na árvore amarrar
Olha, aqui é tão gostoso
Que vale a pena falar
É plantio de soja pra todo lado
E o eucalipto pra intercalar
E nós na sombra deitados
E esses versos falados
Eu pude já dedicar
Algo mais pra espiar
E é esse vento tão belo
Do lado a soja está verde
Do outro está amarelo
Parece até a bandeira
Hasteada no castelo
Viver assim pois eu quero
Viver sem preocupação
Aqui no meio do deserto
Eu pareço capitão
Do lado do Elias Bueno
Já foi menino pequeno
E hoje é um bom cidadão
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Dr. Felipe Figueira
Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.