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“Humano, Demasiado Humano”, de Nietzsche


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 05/07/2021
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Nietzsche é um pensador que leio sistematicamente desde 2006. Iniciei pelos chamados escritos de juventude, como “O Nascimento da Tragédia” e as “Extemporâneas”, e depois segui para os textos das segunda e terceira fases, como “Humano, Demasiado Humano”, “A Gaia Ciência”, “Crepúsculo dos Ídolos” e “Ecce Homo”. A obra aqui em resenha encontra-se no início da segunda fase, portanto, precisa ser lida com cuidado, pensando nos textos da juventude e de olho nos textos da “maturidade”.

Em sua primeira fase de criação, algumas características se sobressaem: a reverência a Schopenhauer e a Wagner, a ênfase nos estudos sobre os gregos e textos de forte cunho educacional. Um detalhe, que não é mero detalhe: Schopenhauer e Wagner nunca foram reverenciados como faz um crente a Deus ou a um santo, mas enquanto modelos que poderiam ser seguidos. Porém, esse seguir implicada, em primeiro lugar, seguir-se, isto é, não deveria ser algo dócil, sem filtros. A ênfase nos gregos diminuirá, mas o respeito a certas figuras, como a Dionísio, permanecerá ao longo de sua criação. E dissertações com um viés mais pedagógico não encontraremos, todavia, não serão poucos os aforismos que Nietzsche falará sobre educação e sobre os eruditos, e a própria crítica à ciência, segundo entendo, é uma faceta formativa do filósofo.

“Humano” é um livro de 1878, fruto de reflexões do filósofo conta vários pontos que lhe eram basilares, bem como é um livro que preza por um estilo de escrita aforismático, ao invés de longas dissertações. Esse estilo será uma das marcas de Nietzsche em seus escritos posteriores, à exceção de um ou outro, como “Genealogia da Moral” e “Ecce Homo”. Dentre as características de “Humano” destaca-se: o respeito pela ciência, a crítica à metafísica e a figura do espírito livre.

O respeito pela ciência e a crítica à metafísica caminham juntos. Nesse período criativo, Nietzsche aproximou-se de vários cientistas e iluministas, com Voltaire, tanto que há quem chame esse período de “positivista”. Não obstante, que ninguém se engane: Nietzsche não era um positivista, ele não cultuava a ciência, apenas buscou valorizá-la como importante para a superação da metafísica. A crítica à metafísica, por seu turno, implica dizer que nada vem “de cima”, que não há bem e mal predeterminados, e que sequer dons e talentos são “inatos”: isso significa que para que uma virtude possa maturar é preciso esforço, pois tudo é “humano, demasiado humano”.

É importante seguir na seara dos dons e talentos, pois isso implicará, logo mais, em compreender o que é o espírito livre. Há um preconceito até hoje de que quem é genial nasce pronto. Porém, e indo além das ideias nietzschianas, alguém pode até nascer em um berço de ouro, só que se não sair dele, andar, correr, cair, etc., de nada servirá. Se não houver diligência, de nada adiantará. O que há de segredo, então, nisso tudo? Nada. A tenacidade é a chave para o talento, ou, segundo um ditado, “um por cento inspiração e noventa e nove transpiração”. Leiamos as palavras de Nietzsche no aforismo 163:

163. A seriedade no ofício. – Só não falem de dons e talentos inatos! Podemos nomear grandes homens de toda espécie que foram pouco dotados. Mas adquiriram grandeza, tornaram-se “gênios” (como se diz) por qualidades de cuja ausência ninguém que dela esteja cônscio gosta de falar: todos tiveram a diligente seriedade do artesão, que primeiro aprende a construir perfeitamente as partes, antes de ousar fazer um grande todo; permitiram-se tempo para isso, porque tinham mais prazer em fazer bem o pequeno e secundário do que no efeito de um todo deslumbrante. (NIETZSCHE, 2001, p. 125).

Depois que alguns muros caíram, só resta dizer que a verdade é profundamente questionada por Nietzsche. Todo ponto de vista é a vista de um ponto, o que não culmina em relativismo, pois esta é uma postura frágil que tende ao tudo pode, que leva a toscas teorias da conspiração. O que Nietzsche faz é um estudo profundo da natureza da ciência e do porquê a metafísica é frágil. O que o filósofo faz, isto sim, é uma apologia do perspectivismo, ao dizer no prólogo de “Humano”: “Mas tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante necessário, e com ele a virtude da modéstia.” (NIETZSCHE, 2001, p. 16).

Agora, cabe esclarecer o que é o espírito livre. Em primeiro lugar, trata-se de um espírito que se libertou das tradições. É possível ilustrar isso com a seguinte ideia: o tempo linear foi quebrado. Exemplo: um filho de pastor não se torna pastor, mas professor. Nesse sentido, uma escola crítica é profundamente vocacionada ao espírito livre, pois é nesse ambiente que o tempo linear é tantas vezes quebrado. Mais um exemplo: alguém é filho de crentes, mas se torna um crítico das religiões. Essa crítica pode até não implicar em uma descrença, mas em um averiguar das razoes pelas quais se vincula a determinada crença, e isso não é pouca coisa.

Libertar-se das tradições é uma postura radical e revolucionária. Será por esse viés que as demais obras de Nietzsche seguirão, vide a próxima, “Aurora”, e a sua crítica à moral judaico-cristã. Ainda que o termo “espírito livre” não mais apareça com tanta frequência, pois este espírito está em um forte momento de negação (a Schopenhauer e a Wagner, por exemplo), a sua postura crítica sempre se fará presente. Todavia, que ninguém se engane, pois negar também é criar, e criar também é destruir, segundo Nietzsche afirmará em “A Gaia Ciência”, no aforismo 58: “58. Somente enquanto criadores! – Que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusão para destruir o mundo tipo por essencial, a chamada “realidade”? Somente enquanto criadores podemos destruir! – Mas não esqueçamos também isto: basta criar novos nomes, avaliações e probabilidades para, a longo prazo, criar novas “coisas”.” (NIETZSCHE, 2009, p. 96).

Para encerrar esta resenha, segue um aforismo de Nietzsche para saborearmos a sua escrita.

225. O espírito livre, um conceito relativo. – É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que esperaria com base em sua procedência, seu meio, sua posição e função, ou com base nas opiniões que predominam em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra; estes lhe objetam que seus princípios livres têm origem na ânsia de ser notado ou até mesmo levam à inferência de atos livres, isto é, inconciliáveis com a moral cativa. Ocasionalmente se diz também que tais ou quais princípios livres derivariam da excentricidade e da excitação mental; mas assim fala apenas a maldade que não acredita ela mesma no que diz e só quer prejudicar: pois geralmente o testemunho da maior qualidade e agudeza intelectual do espírito livre está escrito em seu próprio rosto, de modo tão claro que os espíritos cativos compreendem muito bem. Mas as duas outras explicações para o livre-pensar são honestas; de fato, muitos espíritos livres se originam de um ou de outro modo. Por isso mesmo, no entanto, as teses a que chegaram por esses caminhos podem ser mais verdadeiras e mais confiáveis que as dos espíritos atados. No conhecimento da verdade o que importa é possuí-la, e não o impulso que nos fez buscá-la nem o caminho pelo qual foi achada. Se os espíritos livres estão certos, então aqueles cativos estão errados, pouco interessando se os primeiros chegaram à verdade pela imoralidade e os outros se apegaram à inverdade por moralidade. – De resto, não é próprio da essência do espírito livre ter opiniões mais corretas, mas sim ter se libertado da tradição, com felicidade ou com um fracasso. Normalmente, porém, ele terá ao seu lado a verdade, ou pelo menos o espírito da busca da verdade: ele exige razões; os outros, fé. (p. 157).

 

Friedrich Wilhelm Nietzsche. A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

_______________________. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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