Homero. “Ilíada”
1 – A obra
Eu já tive várias imersões pela cultura grega. Uma delas foi em 2016, quando visitei a terra de Sócrates, outra foi em fevereiro de 2022, lendo “Ilíada”. Antecipo que em 2022 cheguei a mais uma imersão, lendo a “Odisseia”. Há livros que nos entregam não apenas uma experiência intelectual, mas nos colocam em outros modos de vida.
Ao longo da “Ilíada”, Homero, o “poeta cego”, tinha noção do tamanho da sua empreitada, a ponto de desabafar, algo raro na obra, sobre a dificuldade de escrever. Ele diz que não é um deus para poder narrar tudo o que se passou: “E difícil seria para mim narrar tudo como um deus.” (HOMERO, 2013, p. 371). Esse desabafo é um alívio aos escritores em geral, que tantas vezes se angustiam diante das letras.
Feita essa introdução, agora cabe ir direto à obra. “Ilíada” é dividida em vinte e quatro cantos e, por meio de versos, narra partes da famosa Guerra de Troia (particularmente, os cinquenta e um dias da ira de Aquiles durante o décimo ano da Guerra), que dividiu Aqueus (gregos) e Troianos. Essa história já rendeu filmes, séries, livros e tudo o mais que possa ser concebido, e isso é óbvio, pois essa obra é considerada a primeira a história da Europa. Fato curioso: a história literária europeia começa com uma guerra e hoje, março de 2022, ao eu escrever esta resenha, aquele continente encontra-se em guerra, no caso, entre Rússia e Ucrânia, fora as milhares de outras que a Europa já promoveu. É como se a guerra fosse a mãe da Europa e a lança a sua dileta filha.
Críticas à parte, a Guerra de Troia é mais do que um relato militar, ela é narrada por Homero de modo artístico, poético. Ela só adquire essa extensão porque dois nobres, Agamêmnon, o rei mais poderoso, e Aquiles, o guerreiro mais potente, se desentendem. Agamêmnon tira um prêmio de Aquiles, no caso, Briseida, o que lhe ferirá o ânimo. Por causa disso, o valente guerreiro não entrará na batalha, e os Aqueus, por causa da arrogância de seu rei, padecerão. Trata-se de uma disputa entre egos. Passam-se cantos e cantos no livro em que só o que se lê, sem, porém, se tornar enfadonho, são mortes.
Lado a lado com os mortais estão os deuses, a ponto de que a mãe de Aquiles, Tétis, ser uma imortal. Zeus, pai dos deuses, a tudo controla, por ser o mais forte, porém, ao mesmo tempo, tudo sai do seu controle. Os deuses o ludibriam, o irritam, o seduzem, tudo para fazerem prevalecer uma ou outra parte, Aqueus ou Troianos. Havia deuses a favor dos troianos, como Apolo e Afrodite, e deuses a favor dos gregos, como Atena e Posêidon. Este, por sinal, se irritava contra os troianos porque ele os ajudou a construir a sua poderosa muralha, mas eles, por meio do rei Laomedonte, não o honraram. Sobre todos estava Zeus, equilibrando a balança, no entanto, quem está sobre todos também está sob todos.

Templo de Zeus Olímpico, em Atenas
A trama da “Ilíada” é tão ardilosa e bem construída que é quase impossível tomar lado. Ora o leitor quer a vitória de Heitor e Eneias, nobres troianos, ora quer que Ulisses, Ájax e Menelau prevaleçam, já que toda a história começou com o rapto de Helena, esposa do atrida Menelau, por parte de Páris, irmão de Heitor. O que se vê é que a batalha não é fácil, leva anos, e que mesmo o vencedor terá perdido – e muito. Eis uma vitória pírrica?
É um milagre que as obras de Homero tenham resistido a mais de dois milênios, quase três, e ainda hoje possam ser apreciadas. Quantas e quantas coisas que pereceram nesse tempo... Por essas e outras valeriam a pena ser lidas, como pura curiosidade histórica, mas não, elas vão além, inspirando, conforme dito, criações sem fim.
E quem, afinal, venceu a Guerra de Troia. Ainda que o seu fim seja bem conhecido, não o contarei, pois vale a pena acompanhar a saga dos heróis e suas glórias, angústias, choros e triunfos. Por mais que seja um grande herói, a exemplo de Aquiles, o choro lhe era inevitável, como quando lhe foi tirado o prêmio, ou quanto Heitor tirou a vida de Pátroclo, seu melhor amigo. O guerreiro chorou muito e por dias, a ponto de ser consolado pela mãe.
2 – Extensão
A quem se perguntar: será que Hera, Zeus, Palas Atenas, Íris, Hermes, Apolo e Posêidon realmente existiram? Eu respondo objetivamente: sim. Deuses, em várias situações, servem para justificar e motivar heróis, logo, possuem existência. O que seria de Aquiles sem Zeus e Tétis? O que seria de Heitor sem Zeus? O que seria de Ulisses sem Atena? Um poderia existir sem o outro? Eu sei que esse raciocínio possui riscos e facilmente pode levar ao ateísmo, mas, o meu objetivo não é esse, senão vejamos mais exemplos e explicações.
Na época da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais multiplicaram-se heróis, sejam seres humanos, sejam personagens de animação, feitos para animar os ânimos. É o caso do Capitão América, do Super Homem e até do Popeye. O Popeye é o bravo marinheiro estadunidense que lutará contra os russos, representados por Brutus, para defender a indefesa Maria Olívia Palito (que países ela representaria?). Quando o marinheiro come o espinafre (dólar?) tornava-se imbatível. As cores azul, vermelho e branco, com as estrelas, tornam-se símbolos poderosos para triunfo e paz. Não são poucas as vezes nos séculos XX e XXI que os Estados Unidos da América foram um símbolo para solução final, como no caso da guerra entre Rússia e Ucrânia, em que os EUA, com o seu significativo poder na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), pode mudar os rumos da guerra. Mas, que ninguém se iluda: os Estados Unidos já perderam batalhas e levaram países a verdadeiras ruínas. Vide os casos do Iraque e da Síria. O mesmo cenário heroico se aplica à Rússia, pois não são poucos os que associam a cor vermelha à defesa dos fracos e oprimidos. No fundo, ambas são posturas frágeis e infantis, de quem espera soluções fáceis.
O que se percebe é que, com as devidas ressalvas, o modelo mítico criado ou consolidado por Homero encontra multiplicidade. Talvez porque os mitos são limitados. Talvez porque os seres humanos são limitados em sua imaginação. Talvez... A questão é que é possível enxergar os gregos de milênios atrás como nossos irmãos, e esse é um exercício que não é preciso muita imaginação, ainda que muita imaginação e esforço tenham sido necessários para que a colossal “Ilíada” fosse concebida.
Homero. Ilíada. Trad. de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.