Escravidão e diáspora africana nos séculos XV e XVI: o problema do revisionismo seletivo
Por Gustavo Franco[1]
Durante as aulas sobre Diáspora Africana com o Educador Fernando Razente, na disciplina de Cultura Religiosa, pude estudar com profundidade a origem histórica do tráfico transatlântico de africanos escravizados como um dos pilares da economia colonial brasileira, com impacto decisivo na formação social, cultural e racial do Brasil.
Neste artigo, pretendo abordar esse complexo e odioso comércio de forma fundamentada, pois compreender sua origem é essencial para evitar simplificações ideológicas que desconsideram os fatos históricos.
No início do século XV, com as Grandes Navegações, os europeus passaram a estabelecer contato com diversos povos e culturas. Um desses encontros decisivos ocorreu em 1483, quando o navegador português Diogo Cão entrou pela foz do rio Congo e estabeleceu o primeiro contato com o Reino do Congo, uma estrutura política centralizada e cristianizada que já possuía relações comerciais e militares com povos vizinhos.
Em 1491, após anos de aproximação diplomática, foi assinado um tratado entre o Reino de Portugal e o Reino do Congo. Esse acordo formalizou a conversão do rei congolês Nzinga a Nkuwu ao cristianismo (batizado como João I), autorizou a atuação de missionários católicos e criou as bases para o comércio regular — inclusive o tráfico de cativos.
Importante destacar que a escravidão já existia no Reino do Congo muito antes da chegada dos portugueses. Fontes históricas revelam que as primeiras cartas do rei Afonso I (Nzinga Mbemba), filho de João I, já mencionavam a existência de mercados internos de escravizados. Afonso descrevia a captura de pessoas em guerras e sua posterior venda a mercadores portugueses. A maioria dos cativos enviados ao litoral e dali embarcados pelos portugueses provavelmente eram prisioneiros de guerra oriundos das campanhas de expansão e consolidação do poder do próprio reino nas fronteiras sul e leste.
Afonso, embora cristão devoto e aliado de Portugal, considerava que o tráfico deveria obedecer às leis do Congo, e por isso, em 1526, desconfiando que os portugueses estavam comprando escravos ilegalmente, ele escreveu uma famosa carta ao rei João III de Portugal denunciando o sequestro de súditos livres e pedindo o fim da prática. Para tentar conter os abusos, Afonso chegou a instituir uma comissão especial encarregada de verificar a legalidade da condição dos escravizados vendidos aos europeus.
Portanto, o comércio de escravos entre Congo e Portugal não foi um processo unilateral de captura e submissão, mas sim um arranjo político-comercial complexo, baseado em alianças e interesses mútuos. Como afirmam as historiadoras Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Starling:
“Diferentemente do que se costuma pensar, os africanos não eram apenas apreendidos. Precisavam ser trocados por tecidos, instrumentos agrícolas, barras de metal, pólvora, cachaça, rum e outras bebidas alcoólicas; produtos que se transformaram em moedas fortes nas mãos de traficantes. Outro engano é descrever os negociantes africanos como ingênuos ou passivos na comercialização. Ao contrário, eles condicionaram as relações mercantis às circunstâncias de seus próprios mercados.” (SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia, p. 83.)
Essas dinâmicas estão registradas em cartas diplomáticas preservadas no Acervo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, e reunidas em obras como a Monumenta Missionária Africana (1342–1499) e a História do Congo: obra póstuma (1877). Estima-se que cerca de 6 milhões de africanos foram trazidos ao Brasil ao longo de mais de 300 anos, resultado direto de arranjos como o entre Portugal e o Congo.
Contudo, na contemporaneidade, muitos pesquisadores lamentavelmente omitem ou relativizam a participação africana nesse comércio; e isso, por motivações ideológicas, caindo em revisionismo seletivo ou historicismo ideológico. Tal postura não se sustenta diante das fontes históricas e da produção acadêmica especializada. O historiador John Thornton (1949-), um dos pesquisadores mais respeitados no tema, afirma:
“Meu estudo das relações políticas e militares entre Africanos e Europeus conclui que os africanos controlavam a natureza das suas interações com a Europa. Os Europeus não tinham o poder militar para forçar os Africanos a participarem em qualquer tipo de comércio no qual seus líderes não quisessem participar. Portanto, todo comércio com o Atlântico, incluindo o comércio de escravos, tinha que ser voluntário.” (THORNTON, John. Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400–1800, p. 7. Tradução nossa.)
Thornton não afirma que os africanos escravizados foram voluntários, mas sim que a participação dos líderes africanos era deliberada e estratégica. Os europeus, especialmente nos primeiros séculos, não tinham poder militar suficiente para impor o comércio pela força, sobretudo no interior do continente. Assim, os termos do tráfico foram definidos com base em alianças políticas e vantagens mútuas, e não por imposição unidirecional.
Dessa forma, podemos concluir que o início do tráfico atlântico de africanos escravizados esteve profundamente enraizado nas disputas de poder e alianças entre elites africanas e europeias. Foi uma triste colaboração: elites africanas participaram ativamente do comércio de cativos, em alianças com mercadores europeus, em um sistema de captura e venda de pessoas pertencentes a outros grupos étnicos ou políticos. Uma das páginas mais lamentáveis da história da humanidade — e que precisa ser encarada com rigor histórico, sem seletividade de fontes ou manipulação ideológica da narrativa histórica.