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A visão marxiana da religião


Por: Especial para JN
Data: 22/09/2025
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Por Matheus Passareli da Silva[1]

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Desde o século XIX, Karl Marx tem exercido profunda influência em diversas correntes de pensamento, sobretudo nas áreas política, econômica e social. Obras como O Manifesto Comunista e O Capital consolidaram uma crítica radical ao capitalismo, cujo alcance ultrapassa os limites da economia e abarca a própria compreensão da religião. Nesse sentido, a crítica de Marx à religião não deve ser lida como um comentário lateral, mas como parte integrante de sua análise das estruturas sociais e da alienação produzida pelo sistema capitalista.

Nos escritos de juventude, especialmente em Para a crítica da filosofia do direito de Hegel: Introdução e nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx descreve a religião como “a autoconsciência invertida do mundo”, uma forma de alienação que surge quando o ser humano, privado de condições de vida dignas, cria um horizonte ilusório para suportar sua miséria. A célebre frase segundo a qual a religião é o “ópio do povo” não deve ser entendida apenas como uma condenação superficial da fé, mas como a constatação de que ela oferece consolo diante da opressão, ao mesmo tempo em que mascara as contradições sociais. No Livro I de O Capital, a análise do fetichismo da mercadoria amplia essa perspectiva, mostrando como o próprio capitalismo produz consciências invertidas, nas quais relações sociais aparecem sob a forma de coisas. A religião, nesse quadro, é apenas um caso particular da lógica mais ampla de inversão ideológica própria do capital.

O caminho que leva Marx a essa formulação passa por sua interlocução crítica com Ludwig Feuerbach. Este havia explicado a religião como projeção da essência humana em um ser divino, deslocando para Deus o que pertence ao homem. Marx herda essa intuição, mas a transforma. Para ele, a projeção não nasce de uma subjetividade abstrata, mas de condições materiais concretas, de formas de trabalho, propriedade e poder que determinam uma consciência distorcida. Assim, em obras como A ideologia alemã e nas Teses sobre Feuerbach, Marx supera o horizonte antropológico de Feuerbach e insere a crítica da religião no campo mais amplo da crítica à ideologia e ao capitalismo.

A crítica de Marx à religião foi alvo de múltiplas interpretações. Karl Löwith (1954) salientou que a noção de autoalienação estrutura o pensamento marxiano, apresentando a religião como sintoma de cisões históricas reais, superáveis apenas pela transformação social. Delos McKown (1975) acentuou que, em toda a trajetória intelectual de Marx, persiste a denúncia de que a religião serve como paliativo ideológico, sustentando a ordem social vigente.

Já Davi Charles Gomes, em Analisando a Crítica Marxista: de Prometeu a Proteus (2017), propõe uma leitura que explicita tanto a força quanto a fragilidade da posição de Marx. Para Gomes, Marx enxerga a religião como uma forma de autoengano – “um engano do eu, pelo eu e em prol do eu” –  que cumpre a função de consolar o ser humano diante da opressão, mas que ao mesmo tempo reforça a alienação. O mérito dessa crítica, segundo Gomes, está em desvelar o caráter social e político da religião, mostrando-a como fenômeno histórico que contribui para legitimar relações de dominação. Nesse ponto, a análise marxiana é valiosa porque rompe com uma compreensão puramente espiritualizada da fé e coloca em evidência suas implicações sociais.

Entretanto, Gomes também evidencia os limites dessa abordagem. Para Marx, a religião se reduz a um mecanismo ideológico, cuja existência se explica inteiramente pela estrutura econômica e pela luta de classes. Nesse reducionismo, a fé perde sua dimensão existencial e transcendental, sendo tratada apenas como instrumento de manutenção da ordem. Essa operação empobrece a compreensão do fenômeno religioso, pois ignora que a religião mobiliza sentidos de transcendência, de moralidade e de identidade que ultrapassam as relações de produção.

Além disso, Gomes ressalta uma contradição interna à crítica marxiana: ao acusar a religião de autoengano, Marx acaba caindo em um autoengano próprio – a crença na autonomia absoluta da consciência humana, como se ela pudesse se libertar plenamente apenas pela transformação material, sem considerar a presença de fatores externos, espirituais ou transcendentes que também configuram a experiência humana.

Assim, para Gomes, a crítica marxista à religião só pode ser compreendida em seu lugar: como parte inseparável da crítica ao capitalismo. Porém, ao reduzir a religião a ideologia, Marx falha em reconhecer sua complexidade e acaba por revelar mais os limites de sua própria filosofia do que os da fé.

 

Referências bibliográficas:

GOMES, Davi Charles. Analisando a Critica Marxista: de Prometeu a Proteus. São Paulo: Mackenzie, 2017.

LÖWITH, Karl. Man’s self-alienation in the early writings of Marx. Social Research, v. 21, n. 2, p. 204–230, 1954.

MACINTYRE, Alasdair. Marxism and Christianity. New York: Schocken Books, 1968. (1ª ed. britânica: London: Duckworth, 1968).

McKOWN, Delos B. The Classical Marxist Critiques of Religion: Marx, Engels, Lenin, Kautsky. The Hague: Martinus Nijhoff, 1975.

MARX, Karl. Para a crítica da filosofia do direito de Hegel: Introdução. In: ____. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004. (Reimpr. 2010).

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle; Nélio Schneider; Luciano C. Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2010.



[1]Educando da 2ª série 1 do Ensino Médio do Colégio Coração de Jesus.


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