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A meritocracia e os seus labirintos


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 15/05/2020
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Eu corro o risco de fazer desse texto um dos meus mais vagos e imprecisos; eu corro o risco de fazer desse texto uma polêmica sem síntese, porém, farei mesmo assim. Acho interessante a ideia de meritocracia, todavia, mais problemática do que frutífera.

Em linguagem superficial e do entendimento comum, meritocracia relaciona-se á capacidade da pessoa, através do próprio esforço, conseguir o que bem entende. Traduzindo em um conhecido jargão: “quem quer consegue”. Porém, parece-me que tal ideologia, fortemente baseada no “faça você mesmo”, se esquece que há uma profunda interdependência entre as pessoas e que uma força só existe em relação a outra força, isto é, tudo acaba por se interligar.

Cabe aqui relatar um pouco de experiências, algo comum em meus textos. Já lecionei para públicos bem diversos, desde alunos cujas férias familiares eram em outros países, sendo que um dos meios de transporte era um helicóptero, até alunos que dependiam de todo tipo de auxílio do governo. São realidades tão distintas que parecem mais mundos distintos, ou países distintos, com linguagens e vivências muito diferentes.

Já tive também oportunidade de estudar em lugares, como a Nova Zelândia, em que boa parte dos meus colegas de sala (não era meu caso, pois eu era e sou professor) estava em um ano sabático para conhecer o mundo, sem precisar de nenhum tipo de trabalho. Às vezes, trabalhavam só para aperfeiçoar o inglês. E estudei, também, seja História na UNESPAR (Campus FAFIPA), Pedagogia na UNINTER ou Direito na UNIPAR, com pessoas que trabalhavam (trabalham) o dia inteiro para poder, por três ou quatro horas, estudarem a noite. Como comparar um estudante com outro? Como comparar um universo com outro?

Rotineiramente vejo meus alunos saírem de suas cidades às cinco da tarde para chegarem ao IFPR às sete. Muitas vezes saem sem comer nada, afinal, trabalharam o dia inteiro, desde às sete da manhã, e acabam por improvisar algum lanche na instituição de ensino. O tempo de estudo? Às vezes é tão escasso que é insuficiente diante do tamanho das demandas acadêmicas. Notas vermelhas e conceitos abaixo da média necessária tornam-se comuns, e isso não necessariamente por relaxo, mas por falta de oportunidade e cansaço. Eu sinto que não estou a lidar com estudantes ideais, mas com trabalhadores reais.

Quando cursei História, entre 2007 e 2010, fui colega de sala de uma moça, na verdade, de uma mulher de 30 anos e mãe de família, que trabalhava o dia inteiro na colheita de algodão. Para mim ela era um exemplo, não só porque conseguia conciliar os estudos com a família, mas também porque nunca ficou para nenhum exame final, tampouco ficou retira em alguma disciplina (a famosa dependência – DP). No entanto, ela própria chegou a assumir que tudo o que ocorreu com ela ao longo dos quatro anos de graduação, que incluía o esforço diário e uma viagem de mais de 100 quilômetros entre ida e volta da UNESPAR, tinha sido uma grande exceção. Dito em outras palavras: não é possível tornar a exceção em regra (a minha colega mesmo assumiu isso), na medida que esse se torna um perigoso discurso vinculado ao “quem quer consegue”, que é possível perceber nesse texto o quão problemático ele é.

Diante dos dilemas apresentados, o que fazer? Relaxar o ensino? Não, pois isso seria uma forma de menosprezo ao aluno e à sua condição de trabalhador. A função do professor é ensinar com toda qualidade e rigorosidade possíveis, mas sem perder de vista que o público não é o de alunos ideais, mas de estudantes/trabalhadores reais.

No universo ideal, a meritocracia é interessante e desejável, porém, no universo real, ela não raro se torna irritante e intragável. O que fazer, então, diante de uma sociedade que, na prática, pouco se importa de acolher o estudante trabalhador? Eis um grave impasse, que, como eu disse, esse texto corria o risco de ser vago, impreciso e mesmo uma polêmica.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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