A Lei natural e o julgamento de Cristo
Romanos 2.14: “Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos.”
No último texto expus o versículo 13, onde Paulo demonstra – tendo em vista especialmente o homem judeu, herdeiro da aliança – que o único caminho da justificação do ser humano é o cumprimento, a prática integral, da Lei do Senhor e não meramente o ouvir e o conhecer a tal Lei.
Vimos que, com isso, Paulo não estava abrindo possibilidades de salvação mediante as obras, mas mostrando que a justificação se dá apenas mediante a prática perfeita e cabal da Lei, o que, sendo impossível a humanidade enferma pelo pecado (Rm 8.3), foi possível para Jesus Cristo, o Deus encarnado. Logo, o evangelho promete a todo aquele que crê em Cristo, o receber d’Ele gratuitamente sua justiça perfeita, a fim de ser justificado e aceito eternamente por Deus (At 13.39).
Mas não eram apenas os judeus que possuíam uma Lei para ouvir e cumprir. Não eram apenas os judeus que seriam julgados de acordo com uma regra legal. Os gentios também. Mas no caso dos gentios, trata-se uma Lei diferente, mas ainda assim uma Lei, inscrita por Deus em seus corações, à semelhança da Lei moral posta no coração de Adão e Eva, quando a Lei especial (Sagradas Escrituras) ainda não tinha sido dada (Cf. CFW, 4.2; 19.1; CM 17).
É sobre essa Lei natural, a quebra dela por parte dos gentios e o julgamento que Cristo, constituído por Deus como Juiz sobre vivos e mortos fará (Atos 10.42), que Paulo busca lidar no versículo 14. A seguir, vejamos como Paulo faz isso na exposição da referida passagem.
Paulo parece estar respondendo à seguinte questão: se Deus é justo, e “(...) retribuirá a cada um segundo o seu procedimento” (Rm 2.6), qual será a base de seu julgamento no caso dos gentios, visto que eles não possuem a Lei do Senhor? Em outras palavras, como Deus retribuirá as ações dos gentios se eles não receberam a Revelação especial?
Paulo começa o versículo 14 reconhecendo que, de fato, os gentios “(...) não tem lei”, referindo-se à Revelação verbal e especial de Deus feita escrita no Antigo Testamento. Os gentios – povos não judeus – não possuíam essa luz, esse guia claro e preciso a respeito da vontade do Criador que os judeus receberam graciosa e eletivamente.
No entanto – prossegue Paulo – mesmo sem essa lei os gentios “(...) procedem, por natureza, de conformidade com a lei”, mesmo “(...) não tendo lei”. Os gentios, no dizer de João Calvino “(...) provam por suas próprias ações que têm alguma regra de retidão”, e isso ao viverem em muitas situações, de acordo com a Palavra de Deus.
Como argumentou o comentarista bíblico e pastor John Stott, entre os pagãos e gentios, de fato nem todos são “(...) bandidos, vilões, ladrões, adúlteros e assassinos. (...) existem muitos que honram seus pais, reconhecem a santidade da vida humana, são fiéis ao cônjuge, praticam a honestidade, falam a verdade e se contentam com o que possuem, tal qual se requer nos últimos seis dos dez mandamentos.” (STOTT, 2007, p. 96)
Logo, como explicar essa aparente contradição? Que os que não tem a Palavra de Deus, vivam de acordo com a Palavra em muitas de suas exigências? A resposta de Paulo, ao concluir o versículo, é que “(...) servem eles de lei para si mesmos.” Essa porção não deve ser entendida no sentido popular, de que os pagãos podem moldar a sua própria lei a partir de um subjetivismo moral radical. O sentido da porção textual é que aos pagãos, o próprio fato de serem humanos, criaturas feitas à imagem e semelhança de Deus (At 17.25), torna-se numa lei, norma e regra!
Deus, ao criar a humanidade, e sustentar o nascimento de sociedades e civilizações, os fez seres à sua imagem (imago Dei), como seres pessoais, morais e auto-conscientes, de modo que em seus comportamentos, tais características antropológicas morais ficam logo evidentes. Os povos gentios, por serem criaturas de Deus, agem sem o amparo da Lei positivamente revelada, mas ainda assim, agem moralmente revelando uma norma oculta.
Até mesmo da perspectiva filosófica greco-romana, há um reconhecimento de uma norma geral inscrita no consciência dos seres humanos – in foro conscientiae –, pois todas as pessoas possuem alguma medida de conhecimento inato sobre certo e errado, embora um conhecimento muito menos explícito e claro do que aparece nas Escrituras (KEENER, 2017, P. 512).
Por fim, como declarou Calvino, o fato que Paulo tenta mostrar é que “(...) não há nação tão perdida para tudo o que é humano, que não se mantenha dentro dos limites de algumas leis”. Assim, embora não possuindo uma lei escrita em suas mãos, possuem uma lei inscrita pelo próprio Criador em seus corações, revelada em suas próprias ações – sobre a lei inscrita no coração, veremos com mais detalhes na próxima exposição, no versículo 15.
A questão é: qual o propósito dessa lei moral natural? Assim como a lei especial da Palavra de Deus, essa lei natural não é um princípio de salvação, mas um guia da vontade de Deus, para que todos saibam o que Deus requer. Sendo assim, a lei natural servirá de regra da justiça divina direcionada aos gentios; justiça que “(...) retribuirá a cada um segundo o seu procedimento” (Rm 2.6), “(...) no dia em que Deus, por meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos homens, de conformidade com o meu evangelho.” (Rm 2.16).
Amém.
“Breve o Senhor, em esplendor,
Aqui há de descer.
O mundo inteiro, com temor,
Justiça, então vai ter.
Eis a verdade a despontar
Qual planta a reflorir;
Eis a justiça a iluminar
O mundo que há de vir.”
(O Senhor Voltará, Hinário Novo Cântico, nº 294)
Iustus fide vivet
[O justo viverá pela fé.]
Fernando Razente
Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.