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Uma alusão honrosa à obra “Nietzsche e o Eruditismo” (2018), do historiador Felipe Figueira


Por: Fernando Razente
Data: 03/02/2023
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Foto: Divulgação

Por Prof. Fernando Razente[1]

“Além disso, odeio tudo aquilo que somente me instrua sem aumentar ou estimular diretamente minha atividade.” — Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), poeta e romancista alemão, autor de Os Sofrimentos do Jovem Werther e Fausto.

Conforme registrei na própria obra  um pouco abaixo da dedicatória — era noite de 06 de agosto de 2018, quando o livro “Nietzsche e o Eruditismo”, do Pós-Doutor em História, Prof. Felipe Figueira, chegou em minhas mãos. O recebi com o entusiasmo de um jovem acadêmico que adorava ler Nietzsche e que também nutria um grande apreço por eruditos.

Por providência literária, eu tinha acabado de ler “A arte de escrever”,[2] do filósofo alemão Arthur Schopenhauer[3] (1788-1860), que no primeiro capítulo escreve “Sobre a erudição e os eruditos”, onde faz uma célebre declaração: “Para a imensa maioria dos eruditos, sua ciência é um meio e não um fim. Desse modo, nunca chegarão a realizar nada de grandioso, porque para tanto seria preciso que tivessem o saber como meta, e que todo o resto, mesmo sua própria existência, fosse apenas um meio.”[4]

O grande problema da erudição, como declara o Prof. Renato Nunes Bittencourt (FACC-UFRJ) “[...] não é a erudição, conveniente para todo o pesquisador que visa compreender o debate sobre um tema e apresentar novas visões e novas versões sobre o problema existente. [...] A decadência vital, portanto, se encontra no eruditismo, que na filosofia de Nietzsche se configura como o dispositivo hipertrofiado de um intelecto que visa apresentar o conhecimento como uma armadura epistêmica, que, ao fim e ao cabo, protege o frágil sujeito de sua imersão com a imanência do mundo.”

O eruditismo   e os outros ismos, como historicismo, biologismo, psicologismo, moralismo, esteticismo  nada mais é que uma perversão da ordem adequada do propósito e função de sua própria natureza, levando a descaracterização própria.[5] Logo, não é o erudito ou a erudição que devemos odiar  para usar a linguagem de Goethe , mas o eruditismo, que segundo Dr. Figueira perspicazmente descreveu, não responde “[...] adequadamente às questões da vida, cujo conhecimento é sempre contingente, torna-se o senhor do excesso e do supérfluo, pois a decompõe em prol de seus vários interesses unilaterais (especializados), preconizando o desprezo pela grandeza da existência, que exige uma visão orgânica e não uma visão estrita.”[6]

Erudição, portanto, não é mera instrução. É atividade. E foi exatamente essa atividade que gerou este livro importantíssimo para educadores brasileiros. Sobre os ombros  que logo desceu para caminhar com sua própria reflexão  de pensadores como a filósofa Arendt, o padre e historiador Copleston, o poeta Goethe, o romancista Kafka, o dramaturgo Molière e outros pesquisadores e especialistas, o Dr. Felipe fez um trabalho primoroso analisando histórica e filosoficamente a crítica do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) ao eruditismo.

No início da obra, Figueira aborda o uso que Nietzsche faz da tragédia grega, envolta dos mitos de Apolo e Dionísio, para criticar o eruditismo (Capítulo 1). A obra que norteará grande parte da reflexão é  Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik [O nascimento da tragédia no Espírito da Música), de 1872, onde Nietzsche apresenta uma crítica ao racionalismo socrático euripidiano (ou cientificismo grego) conhecida também como crítica à dicotomia apolíneo/dionisíaca, que pode ser considerada uma crítica antieruditista.[7]

O livro avança para uma abordagem da relação entre a prática da reflexão histórica e a inutilidade do eruditismo (capítulo 2), com base na obra Unzeitgemässe Betrachtungen [Considerações Extemporâneas ou II Consideração Intempestiva, Da Utilidade e desvantagem da história para a vida], escrito entre 1873-1876, onde vemos Nietzsche criticando a postura de historiadores universitários que, pelo espírito eruditista, estão empanturrados de saber, são meros espectadores do passado, e ipso facto são inférteis na produção de vida e cultura.[8]

Em seguida (Capítulo 3), tendo em vista as obras nietzschianas Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino e III Consideração Intempestiva  Schopenhauer como educador, o Dr. Felipe nos leva a refletir sobre as consequências de um ensino eruditista, para as nossas universidades, especialmente se os mestres não abandonarem o espúrio desejo do conhecimento mediado por seus interesses, inclusive aqueles mais vis e contrários ao amor ao saber como os interesses meramente financeiros da vocação.[9]

O livro termina com as Considerações finais[10] que contém uma bela síntese do projeto inicial do Dr. Felipe Figueira, isto é, demonstrar que o “[...] o ponto central do livro [...] gira em torno do ismo do ‘eruditismo’. É esse ‘ismo’ que culmina numa identificação cega a determinado aspecto da realidade, que faz com que as pessoas parem de olhar para o lado e perceber o colorido da vida, mas, também, o cinza da falta de esperança com que a vida vez ou outra se apresenta. No caso específico do eruditismo, o ‘ismo’ faz com que o indivíduo crie uma indisposição em relação às vivências, crendo que só a revisão bibliográfica basta para compreender e imaginar a existência. É nesse cenário da letra pela letra que o sujeito não consegue mais perceber que a vida está muito além da palavra.”[11]

Do mais, limito-me a defender que o livro "Nietzsche e o Eruditismo do Prof. Felipe Figueira é uma excelente contribuição acadêmica não apenas para perspectiva crítica ao eruditismo contemporâneo, mas também para a leitura adequada, e diria inovadora e problematizadora, das obras de Nietzsche, vislumbrando nelas uma potência crítica e implícita ao eruditismo. “Conhecer deve estar associado ao saber, pois conhecer é viver”, escreveu o autor em meu exemplar. O que mais poderia ser dito?

Descubra por si mesmo ao realizar a leitura.



[1]Professor de História, Filosofia e Sociologia (Colégio Vila Militar e Colégio Sagrado Coração de Jesus) e coordenador de conteúdo na ABC² (Maringá). 

[2]Na verdade, o livro publicado pela L & PM nada mais é que uma antologia de ensaios recolhidos de “Parerga e Paralipomena”, de 1851.

[3]Prof. Felipe Figueira também faz uso da crítica de Schopenhauer em seu livro, pp. 98-108.

[4]SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L & PM, 2018. p. 21, §4.

[5]Cf. DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento Ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. 1° edição. Brasília, DF: Monergismo, 2018.

[6]FIGUEIRA, Felipe. Nietzsche e o Eruditismo. Curitiba, Paraná: CRV, 2018. p. 96.

[7]Ibidem, pp. 27-50.

[8]Ibidem, pp. 51-71.

[9]Ibidem, pp. 73-108.

[10]Ibidem, pp. 109-113.

[11]Ibidem, pp. 109-110.

Fernando Razente

Amante de História, atuante com comunicação e mídia, leitor voraz e escritor de artigos de opinião e matérias jornalísticas.


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