Democracia, dissenso e a controvérsia sobre a taxação do PIX
Wilson de Jesus Guarnieri Júnior
A proposta do governo Lula de taxar transações via PIX, incluindo operações realizadas por trabalhadores informais e microempreendedores, gerou intensa discussão pública, evidenciando os dilemas e tensões próprios de uma democracia pluralista. Enquanto o governo justifica a medida como uma forma de combater a informalidade e ampliar a base tributária, críticos apontam que a medida penaliza setores mais vulneráveis da sociedade. O debate, que ganhou força com um vídeo viral do deputado federal Nicolas Ferreira (PL-MG), exemplifica a convivência do dissenso no sistema democrático e a função ampliada das redes sociais como espaços de participação política.
A convivência com o dissenso é um pilar essencial da democracia. Conforme a filósofa Chantal Mouffe destacou em The Democratic Paradox (2000), a política democrática não deve buscar eliminar o conflito, mas reconhecê-lo como inerente à pluralidade de perspectivas em uma sociedade. Em outras palavras, a democracia se fortalece quando ideias divergentes são confrontadas de maneira legítima e pública, contribuindo para a formulação de políticas mais representativas e justas.
Nesse caso, a medida de taxação do PIX toca em pontos sensíveis, como a justiça fiscal e a proteção dos mais pobres. O governo argumenta que incluir os informais no sistema tributário formal é um passo para combater desigualdades estruturais. Contudo, críticos como Nicolas Ferreira destacam que a proposta falha em diferenciar os grandes volumes transacionados por empresas das movimentações de pequenos trabalhadores informais que utilizam o PIX como uma alternativa prática e barata aos bancos tradicionais.
Como aponta John Stuart Mill em On Liberty (1859), o dissenso é essencial porque impede que políticas sejam implementadas sem um debate rigoroso:
“A única maneira de se atingir a verdade é permitir o confronto das ideias. Mesmo as críticas mais severas têm valor, pois nos ajudam a refinar nossas próprias posições.”
O vídeo de Nicolas Ferreira, que viralizou nas redes sociais, destaca o papel cada vez mais relevante dessas plataformas como um espaço público contemporâneo. Sua crítica pontual — de que a medida prejudica justamente aqueles que deveriam ser protegidos pelo governo — ressoou amplamente, gerando engajamento de milhões de pessoas.
Esse fenômeno ilustra o que Hannah Arendt definiu em A Condição Humana (1958) como a necessidade de um espaço público onde diferentes visões de mundo possam coexistir e ser debatidas. Enquanto no passado a arena política era delimitada pelos parlamentos e pela imprensa tradicional, hoje as redes sociais democratizam o acesso à informação e à manifestação pública.
Contudo, as redes também carregam o risco de simplificação excessiva e polarização, como advertiu Zygmunt Bauman em Modernidade Líquida (2000):
“No mundo líquido-moderno, a comunicação digital pode criar bolhas de eco, nas quais o debate público se torna um palco de reafirmação de certezas, e não de confronto genuíno.”
Apesar disso, o caso do vídeo de Nicolas Ferreira também demonstra o potencial positivo das redes. Sua crítica permitiu ampliar o debate público, levantando questionamentos sobre os impactos reais da taxação para trabalhadores informais e pequenos empreendedores. Diferentemente do controle narrativo descrito por George Orwell em 1984, em que o “Ministério da Verdade” manipulava e censurava a informação, as redes sociais oferecem um contrapeso ao poder central, permitindo que vozes dissidentes mobilizem a opinião pública e cobrem transparência dos governantes.
Do ponto de vista econômico, a medida proposta pelo governo reflete um esforço de ampliação da arrecadação em um país onde a carga tributária recai desproporcionalmente sobre o consumo e os mais pobres. Como apontou o economista Thomas Piketty em O Capital no Século XXI (2013), sistemas tributários que não diferenciam a capacidade de pagamento dos contribuintes ampliam as desigualdades sociais:
“Um sistema fiscal justo não apenas redistribui riqueza, mas também reflete o contrato social de uma nação, garantindo que os mais ricos contribuam proporcionalmente ao que acumulam.”
Nesse sentido, a crítica de Nicolas Ferreira expõe uma falha estrutural no modelo proposto: a taxação do PIX poderia acabar ampliando a carga tributária sobre os mais pobres, sem oferecer contrapartidas que estimulem sua inclusão no mercado formal.
O debate sobre a taxação do PIX reflete mais do que uma simples discordância sobre política fiscal: expõe os desafios da democracia de conciliar eficiência econômica com justiça social, preservando o espaço do dissenso. As críticas levantadas pelo deputado Nicolas Ferreira, ao contrário de serem vistas como mero oportunismo, representam uma prática legítima e necessária na dinâmica democrática, especialmente em um contexto em que as redes sociais ampliam o acesso ao debate público.
Assim como alertou George Orwell em 1984, centralizar narrativas ou silenciar vozes críticas é um dos maiores perigos para qualquer sociedade. O dissenso, quando bem fundamentado e direcionado ao interesse público, é essencial para a transparência e para a evolução das políticas públicas. O papel de figuras públicas como Nicolas, que utilizam as redes sociais para questionar políticas controversas, deve ser valorizado como parte da luta pela ampliação democrática e pela defesa de direitos fundamentais.
Em última análise, a democracia não se fortalece no consenso absoluto, mas na capacidade de dialogar e crescer diante das diferenças. Defender práticas como as do deputado Nicolas é, acima de tudo, defender o direito de questionar, de propor e de representar a voz daqueles que mais precisam ser ouvidos.
Wilson de Jesus Guarnieri Júnior é bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá-PR (2006). Sócio Fundador da Advocacia Guarnieri Consultores Jurídicos e Compliance, com 18 anos de atuação, foi Delegado da Caixa de Assistência dos Advogados da OAB/PR. Advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná (OAB/PR), sob n.º 48.764. Mestrando em Direito Digital e Agronegócio pela Faculdade de Direito Londrina, em Londrina/PR.