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Resenha da obra “Anna Kariênina”, de Liev Tolstói


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 25/04/2024
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         Eu tive que fazer uma cirurgia para retirar duas hérnias umbilicais. Quando retornei da anestesia, eu dizia a todos no hospital, médicos, enfermeiros e para quem dividia o quarto comigo: “Eu preciso saber o final de “Anna Kariênina”, senão vou morrer de curiosidade.” Espantados, me perguntavam o nome do livro e eu dizia: “Anna Kariênina”. Pelo nome ser diferente, a maioria pronunciava errado e isso, para mim, era motivo de irritação.

         Depois que voltei à normalidade, cerca de duas horas após o término da cirurgia, minha esposa e o cirurgião riam, afinal, tudo o que eu mais queria saber era o final da obra de Liev Tolstói (1828-1910), e não se a cirurgia tinha dado certo. Eu próprio ri, apesar dos pontos, pois o meu delírio foi tremendo. O próprio médico confessou que nunca viu nada igual. Mas, por qual razão me veio à mente “Anna Kariênina”, eu não sei precisar, talvez porque Dostoiévski considerava essa obra magnífica, ainda que abominasse o final.

Liev Nikolaevitch Tolstói

Passados dois meses da operação, eu não tinha morrido de curiosidade, mas, para não brincar com o azar, comprei a obra e a li. Logo nas primeiras linhas, a impactante abertura: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” (TOLSTÓI, 2017, p. 14). Depois desse início, não parei mais de ler, sendo que terminei de ler o colosso de 800 páginas, mesmo em meio à minha rotina de trabalho, em apenas duas semanas. 

De Tolstói, eu conhecia apenas “Minha religião”. “Guerra e Paz” eu só sabia a sinopse. Apesar do pouco conhecimento, me lancei à leitura de “Anna Kariênina”, que era para se chamar “Dois casamentos” ou “Dois casais” e posso garantir que recebi uma lição de boa escrita e de cultura.

 “Anna Kariênina” se passa na Rússia da segunda metade do século XIX e contempla a história da aristocracia por meio de duas grandes histórias: de um lado, a da própria Anna, e de outro, a de Liévin. O fato do nome de Liévin ser parecido com o de Liev Tolstói não é mera coincidência. E, para ser mais específico, do que trata a referida obra? Dos bastidores e dos desdobramentos de dois casamentos: primeiro, o de Anna, que não chega a ser um casamento, e o de Liévin, que teve toda a formalidade de tal instituição social.

E por que Anna não chegou a se casar? Na verdade, ela era casada com o alto funcionário público Aleksei Aleksándrovitch, mas, quando foi visitar o irmão, Stiepan Arcáditch (“Stiva”), em Moscou, ela se deparou, na estação de trem, com o conde Vrónski, e esse encontro a marcará para sempre. Vrónski era um nobre militar solteiro, que, ao que tudo indica, se casaria com Kitty (a futura esposa de Liévin e cunhada de Stiva), mas, quando viu Anna, sua vida foi retraçada, até ao ponto em que os dois ficaram juntos, ainda que sem o divórcio em relação a Aleksei Aleksándrovitch.

         Quanto a Liévin, ele era um senhor de terras (a exemplo de Tolstói), consideravelmente mais velho do que Kitty (também a exemplo do escritor russo), e que pediu a mão da moça em casamento, mas ela, tendo em vista Vrónski, recusou. Futuramente os dois se conciliarão e casarão, mas, até lá, Liévin se sentirá humilhado e ficará em amargura.

         “Anna Kariênina” é uma obra de 800 páginas (em minha versão), que, conforme dito, narra dois casamentos, e o interessante é que por mais que os personagens fossem próximos em parentesco, os dois principais, Anna e Liévin, só se encontram uma única vez em toda a obra (entre o final do capítulo IX e ao longo do capítulo X da Parte Sete). Trata-se de um caminhar em paralelo que quase nunca se encontra. No meio dos “dois casais”, Tolstói retrata como era a sociedade aristocrática russa e como que se dava o serviço público de alto escalão nesse país. Príncipes, condes, altos funcionários públicos e senhores de terras não faltam; e mujiques (camponeses) e a forma de organização do trabalho e das propriedades também são descritos.

         Para quem gosta de leitura de qualidade, encontrará em “Anna Kariênina” uma obra de fôlego. É certo que obras de fôlego geralmente são associadas a trabalhos de enorme quantidade de páginas, mas, aliado ao aspecto quantitativo há o rigor qualitativo de Tolstói. Quanto a este aspecto, é possível dizer que “Minha religião”, de menos de 300 páginas (em minha versão), também é uma obra de fôlego.

         Para quem quiser aprender a escrever, o mergulho em Tolstói será valioso, pois se vê como que um mestre apresenta a cena, o cenário e os personagens. Mesmo diante de momentos banais, a boa escrita aparece, como quando Liévin vai acompanhar uma eleição para decano da nobreza e não entende nada, ou como quando ele vai visitar um nobre, conde Bohl, por pura convenção social. Nesses momentos banais é que Tolstói revela o seu humor. Citarei um longo trecho da obra, mas que, devido à sua beleza e profundidade, merece ser lido.

 

“‘Ocultou dos sábios aquilo que revelou às crianças e aos de pouco juízo.’ Assim pensava Liévin a respeito da esposa, enquanto conversava com ela, nessa noite.

Liévin pensou na máxima do Evangelho não por se considerar um sábio. Não se considerava sábio, mas não podia ignorar que era mais inteligente do que a esposa e do que Agáfia Mikhaláilovna e não podia ignorar que, quando pensava na morte, pensava com todas as forças da alma. Sabia também que grandes e numerosos intelectos masculinos, cujas ideias a esse respeito ele havia lido, refletiram em torno do assunto e não chegaram a saber um centésimo do que sabiam sua esposa e Agáfia Mikhaláilovna. Por mais diferentes que fossem essas duas mulheres, Agáfia Mikhaláilovna e Kátia, como seu irmão Nikolai a chamava e como agora Liévin sentia um prazer especial em chamá-la, eram ambas muito semelhantes a esse respeito. Sabiam, sem a menor dúvida, o que era a vida e o que era a morte e, embora não pudessem responder e nem mesmo compreendessem as perguntas que se apresentavam ao espírito de Liévin, as duas não tinham nenhuma dúvida quanto ao significado desse fato e o encaravam de modo absolutamente igual, não só uma em relação à outra, como também partilhavam essa maneira de ver com milhões de outras pessoas. A prova de que elas sabiam com segurança o que era a morte consistia em que ambas, sem hesitar um só minuto, sabiam como deviam lidar com os moribundos e não os temiam. Liévin e os outros, embora pudessem falar muito sobre a morte, obviamente não o sabiam, pois temiam a morte e ignoravam completamente o que era preciso fazer quando as pessoas morriam. Se Liévin estivesse agora sozinho com o irmão Nikolai, teria ficado olhando para ele com horror e, com um horror ainda maior, esperaria, incapaz de fazer qualquer coisa.” (TOLSTÓI, 2017, p. 499, 500).

 

         E para quem busca simples entretenimento, terá em “Anna Kariênina” uma obra que tem características de um romance histórico ao “gosto popular”. Refiro-me ao “gosto popular” porque é possível acompanhar a obra sem grandes esforços de pesquisa. É certo, todavia, que se a pessoa quiser pesquisar os pormenores se fartará, pois há discussões sobre filosofia, sobre política, sobre agricultura, mas, tudo isso, para quem tão somente quer se divertir, pode deixar de lado.

         É evidente que eu, mesmo sabendo o final de “Anna Kariênina”, não o falarei, pois perderia toda a graça (que, para mim, motivou delírios e risadas). Mas, isto sim posso dizer, que quando concluí as oito partes da obra, e especialmente quando me deparei com o último ponto final, eu senti que ainda estava naquele universo mágico, na verdade, na Rússia do século XIX. Todo bom escritor tem o poder de criar mundos e “Anna Kariênina” é um mundo que vale a pena conhecer.

 

 

Liev Tolstói. Anna Kariênina. Trad. de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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