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Parte 2 – “A Divina Comédia – Inferno”


Por: Dr. Felipe Figueira
Data: 14/05/2024
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Uma das obras mais aclamadas da história da literatura se chama “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Todavia, são raras as pessoas que conheço que a leram, ou, para ser mais brando, que a leram por completo, indo além da primeira parte, o “Inferno”.

Inicialmente, a obra de Dante se chamava apenas “Comédia”, mas, alguns anos depois, Giovani Boccaccio, autor do “Decamerão” e um dos grandes entusiastas da obra de Dante, acrescentou o “Divina”, por considerá-la sublime, e esse acréscimo ficou para a posteridade.

Em segundo lugar, “Comédia”, no âmbito medieval, afinal, Dante é um autor do medievo, tem um significado diferente do que tinha na antiguidade grega. Para os gregos, a comédia era feita para escarnecer do mundo comum (vide “Lisístrata”, de Aristófanes); já no mundo medieval, o sentido de comédia era distinto: algo começava ruim, mas terminava bom. Como esclarece o historiador Hilário Franco Jr.: “(...) é um gênero em que a estória começa dura, áspera, e termina bem, ao contrário da tragédia” (2000, p. 64).

Virgílio (70 a.C. – 19 a.C.). Encontra-se enterrado em Nápoles, Itália.

Para se ler a obra de Dante com a devida absorção deve-se observar três aspectos: 1º A Itália, e a Florença em especial, dos séculos XIII e XIV, que se encontrava marcada pela disputa entre guelfos e gibelinos; 2º a Bíblia, afinal, Dante bebe dessa fonte para construir a sua visão espiritual, que vai do Inferno, passando pelo Purgatório, até o Paraíso; e 3º A mitologia greco-romana, até porque o guia do poeta no Inferno e no Purgatório é outro artista, Virgílio, o autor da “Eneida”. O ideal é que o leitor faça a leitura da principal obra de Dante já conhecendo esses três aspectos, mas, caso não, que faça a pesquisa ao longo da leitura, do contrário, a leitura será superficial. E, caso alguém se questione o motivo pelo qual Dante escreveu em poesia e não em prosa o seu texto, cabe o esclarecimento de Hilário Franco Jr.: “(...) ele foi poeta, filósofo, teólogo, pensador político, filólogo, cronista ou alquimista? Questão supérflua e na realidade simples de responder, pois para ele a Verdade é uma e se funde toda na poesia” (2000, p. 13).

O “Inferno” possui 34 cantos (o primeiro é apenas para introduzir “A Divina Comédia”) e se inicia a partir da seguinte situação: Dante, por volta dos 35 anos (“a meio do caminho”) estava perdido em uma “selva escura”, e Beatriz, o seu amor de infância e de toda a vida (apesar de não ter se casado com ela, mas com Gemma Donati), que estava no Paraíso, pede ao grande romano Virgílio, que estava no Limbo, guiar Dante rumo ao bom senso e à verdadeira felicidade. Virgílio, por ter morrido antes de Cristo, se encontrava no Limbo, que é o primeiro círculo do Inferno, o que não é ainda o Inferno, pois este se inicia a partir do segundo círculo, e, por essa razão, poderia ir até os abismos mais profundos desse reino espiritual e até o Purgatório; não poderia ir para o Paraíso, pois este é o lugar para os remidos por Cristo. No Limbo estão figuras ilustres da antiguidade, como Homero, Horário, Ovídio e Lucano, e não há castigo.

E qual a grande missão de Virgílio para que Dante reestabeleça a razão? Levar o florentino aos vários círculos do Inferno (nove, no total), para que, vendo todo tormento existente, siga pelo melhor caminho. A descida ao Inferno é terrível e começa, no Canto III, com os clássicos dizeres no “alto de uma porta”:

 

“VAI-SE POR MIM À CIDADE DOLENTE,

VAI-SE POR MIM À SEMPITERNA DOR,

VAI-SE POR MIM ENTRE A PERDIDA GENTE.

 

MOVEU JUSTIÇA O MEU ALTO FEITOR,

FEZ-ME A DIVINA POTESTADE, MAIS

O SUPREMO SABER E O PRIMO AMOR.

 

ANTES DE MIM NÃO FOI CRIADO MAIS

NADA SENÃO ETERNO, E ETERNA EU DURO.

DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS.” (ALIGHIERI, 2019, p. 37).

 

A partir do segundo círculo, não há esperança de redenção, ao contrário do que há para quem está no Vestíbulo (Limbo). E como se encontra organizada a geografia do Inferno? Vejamos a imagem com os referidos círculos.

Foto: Scala / Reprodução National Geographic

 

1º Círculo: Limbo.

2º Círculo: Vale dos Ventos (Luxúria).

3º Círculo: Lago de Lama (Gula).

4º Círculo: Colina de Rocha (Ganância – Avaros e Pródigos).

5º Círculo: Rio Estige (Ira).

6º Círculo: Cemitério de Fogo (Heresia).

7º Círculo: Vale do Flegetonte (Violência e Bestialidade). Dividida em três giros.

8º Círculo: Malebolge (Fraude). Divide-se em dez valas, que vão desde sedutores-rufiões (vala 1), a maus conselheiros (vala 8, onde se encontra Odisseu) e falsários (vala 10).

9º Círculo: Lago Cocite (Traição). Divide-se em quatro esferas, a depender da gravidade, sendo a última denominada de Judeca e é castigada diretamente por Lúcifer.

 

No último círculo, particularmente na quarta vala, que fica no centro da Terra, encontra-se o próprio Lúcifer a castigar os traidores dos benfeitores. O nome dessa vala é Judeca por causa do traidor de Cristo. A visão é terrível. Mas, eu diria que também são terríveis e angustiantes os demais castigos, pois vão desde ser atormentados por vespas a ser enterrados em túmulos abertos de onde um fogo os consome incessantemente, e tudo isso sem possibilidade de salvação.

4º círculo. Representação de Gustave Doré. Canto VII.

Representação do 6º círculo por Gustave Doré. Canto X.

 

Quando se acompanha a descida ao Inferno, em companhia de Dante e Virgílio, o que se sente é um calafrio, pois muitas pessoas lá estão e muitos pecados são apontados textualmente. Nobres e papas estão no inferno; comerciantes e intelectuais estão no inferno; cidades (Sodoma e Gomorra) estão no inferno; o que fazer? É esse o grande dilema de Dante, apontado inicialmente por Beatriz a Virgílio. A respeito de tudo isso, esclarece Hilário Franco Jr.:

 

“Apesar de que todas essas obras teriam sido suficientes para a posteridade guardar o nome de Dante, sem dúvida o que o torna um dos maiores escritores de todos os tempos é a sua célebre Comédia. Contudo, trata-se de uma obra de difícil interpretação, como o próprio Poeta alertou: ela tem um sentido literal e outro alegórico. Ela permite diferentes leituras, do que decorre sua grandeza, pois cada um pode encontrar ali o que quer, ou melhor, reconhecer ali o que é: a Comédia sempre funcionou como um espelho da condição humana, individual e coletiva, por isso foi exaltada por pessoas e épocas tão diversas. Ela é a autobiografia espiritual do Poeta e uma biografia atemporal do ser humano. De um lado ela é profundamente medieval, de outro essencialmente eterna” (2000, p. 63).

 

E por que a maioria não consegue avançar na leitura indo até o “Purgatório”? Porque o “Inferno” é por demais rico em imagens e, conforme dito, é possível até sentir calafrios (e adrenalina). Para exemplificar, mas sem vulgarizar, o que se vê é algo comum ao ser humano: se fixar no mal e ficar curioso pelo que se passa nos círculos infernais. Quanto ao “Purgatório”, ele é literalmente uma escalada em uma montanha, o que, muitas vezes, é feito lentamente, apesar da visão após a chegada ser sublime. Já com o “Inferno” a sensação é de estar descendo em um tobogã, afinal, quando Lúcifer é arremessado do céu ele vai para o centro da Terra e é essa descida que os poetas fazem. É óbvio que ninguém quer ir para o inferno, mas, para efeitos psicológicos, descer e ver tantas pessoas queimando não deixa de ter um forte poder apelativo.

Depois que os poetas vão à Judeca, é hora de ir a outro reino espiritual, o Purgatório. Dante está fadigado pelas tormentas. Ele foi à selva mais escura possível e viu que se em vida permanecesse como estava o seu futuro seria ruim, e bem distante da amada Beatriz. É chegada a hora de ir ao “Purgatório”.

 

Dante Alighieri. A Divina Comédia – Inferno. Trad. de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2019.

Hilário Franco Jr. Dante: o poeta do absoluto. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.

Dr. Felipe Figueira

Felipe Figueira é doutor em Educação e pós-doutor em História. Professor de História e Pedagogia no Instituto Federal do Paraná (IFPR) Campus Paranavaí.


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